segunda-feira, fevereiro 26, 2018
Entrevistas antigas a autores de BD - José Abrantes
Continuo a reproduzir o conteúdo do suplemento Tablóide que dirigi no jornal Diário Popular, tanto as entrevistas a autores de BD como as respectivas bandas desenhadas. Chegou a vez de José Abrantes, de que, por enquanto, além da entrevista, mostro apenas a prancha inicial da bd que reproduzirei na totalidade em próximo post.
Sublinho que este trabalho jornalístico foi feito no ano de 1986.
------------------------------------------------------
Com os heróis da BD
criam-se laços de afectividade
....................................................
«Acho que as pessoas gostam de se habituar a ler histórias dos mesmos "bonecos". Criam-se assim laços de afectividade e simpatia por eles» - eis a opinião de José Abrantes, um fazedor de histórias aos quadradinhos.
Inicia-se hoje uma nova banda desenhada, assinada por José Abrantes, pseudónimo de José Maria da Piedade de Lancastre e Távora. Nascido em Lisboa, a 9 de Setembro de 1960, frequentou o liceu até ao 5º ano, que deixou incompleto. Embora vivendo ainda em casa dos pais, José Abrantes tenta, como é natural, subsistir pelos seus próprios meios, dedicando-se a tudo o que seja trabalho gráfico: ainda recentemente, por exemplo, tomou a seu cargo a pintura de azulejos artesanais para uma firma da especialidade. E na BD, a nível profissional, manteve-se quatro anos como colaborador permanente na revista «Girassol», até ao momento em que se suspendeu a sua publicação.
Apesar de as perspectivas para os criativos de BD serem desanimadoras, José Abrantes continua a lutar, desesperadamente, para ser profissional de banda desenhada. Um incentivo para ele continuar essa luta ter-lhe-á sido dado, porventura, pelo Clube Português de Banda Desenhada, em 1984. Com efeito, em resultado de votação entre os sócios, o CPBD elegeu-o como Revelação da BD/83, o que lhe deu direito a ser galardoado com o respectivo troféu «O Mosquito».
Para além de outras colaborações que lhe têm permitido tornar-se conhecido do público apreciador de BD, surgiu agora a oportunidade de aparecer no «Tablóide». E, como habitualmente, antecedendo a banda desenhada, insere-se ua entrevista dando a conhecer um pouco da pessoa e do criativo gráfico.
Começámos por lhe pedir uma definição de banda desenhada. Para um apaixonado da matéria, como é o caso, isso não constituiu problema. A sua resposta foi espontânea:
- É a narração por imagens, impressas ou susceptível de sê-lo. Não acho que as Tapeçarias de Bayeux ou os hieróglifos egípcios possam ser considerados banda desenhada.
- A nível artístico, o que é que a BD significa para si?
- Foi a arte que desde mais cedo me seduziu. Gosto muito de fazer BD e, embora possa ter queda para outras formas de arte, é a BD onde actualmente me sinto mais seguro. Daí que não possa - e não queira - optar por outras.
- E a nível prático?
- Considero-a um sério motivo de grandes pressões psicológicas e económicas.
- De onde vêm essas pressões?
- Da apatia do público e da falta de interesse de certas entidades, que deveriam inclinar-se mais para a nossa causa. Além da certeza de nunca poder vir a realizar-me profissionalmente fazendo histórias aos quadradinhos.
- Você falou em causa. Considera que quem faz banda desenhada está a lutar por uma causa?
- Eu acho que quando estou a comer não estou a pensar que estou a lutar pela sobrevivência... Quando estou a fazer BD, normalmente não faço grandes reflexões sobre o que é que estou a fazer, sobre o que é estou a ganhar ou não com isso. Mas acho que o desenhador, só por si, já altera muita coisa.
- Acha que o público está actualmente a mostrar mais interesse pela BD?
- Penso que sim, mas não posso falar do público em geral, porque não tenho relações directas com ele. Mas conheço muitas pessoas que gostam de ler BD.
- E em relação à banda desenhada feita por autores portugueses?
- A maior parte das pessoas que conheço não se interessa pela BD portuguesa. Se lêem as minhas é porque me conhecem. Calculo eu.
- Também penso que a maioria dos apreciadores de BD prefere as obras de autores estrangeiros. Por uma razão muito simples: a diferença de qualidade. Mas isso não impede que o álbum «Eternus 9», de Victor Mesquita, esteja esgotado; que os álbuns «Peregrinação de Fernão Mendes Pinto» e «Os Lusíadas», obras adaptadas à BD por José Ruy, se tenham vendido extraordinariamente bem; também o álbum «La Chavalita», do estreante Arlindo Fagundes, tem tido até agora um apreciável volume de vendas. Julgo, portanto, que há uma razoável receptividade às bandas desenhadas feitas por portugueses, caso elas correspondam ao gosto do público em geral, e ao dos apreciadores, em particular.
Mas retomemos o fio à meada: apesar de não acreditar muito no interesse das pessoas pela BD portuguesa, você já tem uma produção razoável. Diga-me qual foi a primeira banda desenhada que publicou, e o que é que fez depois disso.
- A primeira coisa que publiquei foram três tiras, de carácter político. Foi na «Folha» do CDS (datada de 8/11/75) que, como é óbvio, era editada por aquele partido e distribuída gratuitamente ao público.
Colaborei depois num jornal mensal chamado «Farol», com uma história em cinco pranchas (iniciada no nº1, em Outubro de 1976, e terminada no nº4). Teve argumento de Isabel Mendonça Soares, e intitulou-se «Os Homens Não São Ilhas»; ainda naquele jornal, do nº5 (Março 1977) ao nº8, com a mesma argumentista, fiz «Uma Pista Perigosa», também em cinco pranchas; veio a seguir «No Museu Naval» (2 pranchas), também com argumento de Isabel Soares: esta bd apareceu no «Farol» nº14 (Março de 1978) e foi a primeira banda desenhada assinada por «José Abrantes».
- Que nome ou pseudónimo é que usava anteriormente?
- «Zeta», pseudónimo que abrevia José Távora.
- Continue a enumerar o que já fez até hoje em BD.
- A minha colaboração mais prolongada foi no «Girassol»: iniciou-se em Outubro de 1982 e terminou com o desaparecimento daquela revista, e 1985. Ali criei o herói «Homodonte», e o duo «Esabel & Vicente». Como sabe, estas bandas desenhadas foram realizadas a cores, também da minha autoria.
Ainda neste período colaborei no «Mosquito» nº4 (Nov./84), no seu suplemento «Insecticida», com «Aventura Urbana»; participei no fanzine «Protótipo», no nº0 (Maio/85) com a bd «Fábula Amoral», e no nº1 (Agosto/85) com «Era Uma Vez». Ainda em Junho desse ano colaborei com «bedês» curtas em cinco números do «Jornal Júnior», editado na FIL-Brinca, no decorrer do 4º Festival de BD-Lisboa 85. Também em 1985 participei na TV, no programa «Arroz-Doce» com uma prancha para a BD «Godofredo Leitefresco», posteriormente reproduzida no nº11 do jornal «Pau de Canela».
- Você já criou algumas personagens que têm características de heróis fixos: «Homodonte», «Orn Bigon» e «A Ratazana Perversa», por exemplo. Isso significa que gosta de trabalhar esse género?
- Instintivamente sempre fiz isso, salvo raras excepções. E essas duas personagens que citou em último lugar são, pela primeira vez, personagens que me realizam plenamente, depois de muitos anos de pesquisa.
- Gostaria que me dissesse também se considera que os heróis fixos são favoráveis à popularidade da BD.
- Eu, a nível de leitura de BD, tenho uma grande preferência por séries como «Tintin», «Blueberry» e «Valérian», não querendo dizer com isto que sejam as minhas personagens predilectas. O que quero dizer é que acho que as pessoas gostam de se habituar a ler histórias dos mesmos «bonecos». Criam-se assim laços de afectividade e simpatia pelos mesmos.
- Os nossos autores mais jovens raramente se interessam por agarrar em personagens, temas e ambientes portugueses. O que pensa disto?
- No que me diz respeito, tenho uma história já publicada passada e Lisboa. É a «Aventura Urbana». E neste momento estou a preparar uma nova série que tem como personagem principal um lisboeta de Alfama. Estou agora a pesquisar o ambiente psicológico dos habitantes desse bairro.
- Em que ponto é que está essa BD?
- As primeiras vinte tiras já estão desenhadas.
- Quer dizer que você agora resolveu fazer BD em tiras, e não em pranchas? Porquê?
- Eu gosto de desenhar em formato horizontal. E o trabalho em tiras tem exigências gráficas e narrativas que eu quero explorar.
- Essa BD já tem destino?
- Quero ter a história bastante avançada antes de a apresentar. E agora está parada porque preciso primeiro de estudar melhor os ambientes, para não fazer disparates.
- Em que época é que se passa?
- A história localiza-se em dois mundos diferentes. Quando se passa no nosso mundo, a época é a actual.
- Mudemos de assunto. Há algum desenhador português por quem tenha admiração?
- Vários.
- Nomeadamente...
- Quer uma lista longa?
- Diga.
- Fernando Bento, E.T.Coelho, Renato Abreu, Nazaré Alves. E não falo no Diferr porque não sei se ainda se pode contar com ele.
- Mas o Diferr continua a trabalhar. Por acaso, a BD que ele está em vias de acabar - embora com demora excessiva, concordo - até se destina ao mercado estrangeiro.
- Acho que o Diferr é muito influenciado pelo Jacobs, principalmente, penso eu, no tempo que demora a elaborar uma história... E nunca se sabe se a sua próxima história será a sua «Obra Incompleta»...
- Entre os desenhadores estrangeiros, quais os que admira?
- Como tenho demasiadas preferências, prefiro dizer apenas aqueles que me inspira: Hergé, Carl Barks, Floyd Gottfredson, Segar, Margerin, Chaland.
- Algum deles teve influência no seu estilo?
- Todos.
- Há algum herói da BD estrangeira que considere excepcional?
- Há vários. Mickey, Marsupilami, Tintin, Mortimer (de Jacobs), entre outros. E estou a ser injusto com muitos.
- Por que é que os considera excepcionais?
- Pelas obras em que se incluem e porque são personagens positivas.
- Há algum tema que deseje vir um dia a transformar em BD?
- O «Hobbit», de Tolkien, e se um dia (o que duvido) vier a ter estofo para isso - o que requer genialidade -, o «Senhor dos Anéis», do mesmo autor.
José Abrantes confirma assim que, tal como acontece com outros nossos grafistas, os teas e personagens estrangeiros suscitam-lhe um incontrolável fascínio. Mas ele também já escreveu argumentos para as bandas desenhadas «Dôdô», «Anedota Nuclear» e «Luz» (desenhadas por Renato Abreu), demonstrativas de que, ao nível da sua capacidade, não lhe está vedado sonhar com o seu próprio «Hobbit»... ------------------------------------------------------
Os interessados em ler entrevistas antigas a vários autores de BD, nomeadamente Jorge Colombo, Luís Louro, António Simões, António Ruivo, António Jorge Gonçalves, Luís Diferr, Renato Abreu, "Pitágoras", Miguel Alves (actual Pedro Burgos), poderão fazê-lo clicando no item Entrevistas antigas a autores de BD visível no rodapé
Sem comentários:
Enviar um comentário