terça-feira, novembro 09, 2010

Livros sobre BD - Os meus livros (VI)








Sociologia das Histórias aos Quadradinhos foi o primeiro livro a estudar a Banda Desenhada publicado em Portugal, em 1970.
Da autoria de Jacques Marny, o título original é Le Monde Étonnant des Bandes Dessinées, e a ficha técnica conta como editora no país de origem as Éditions du Centurion, Paris, sendo a obra datada de 1968.
Surpreendentemente, pouco tardou que fosse traduzida em Portugal, talvez graças ao interesse manifestado pela geração de entusiastas da BD na época, que quase tinha aprendido a ler com as revistas Mosquito, Diabrete, Cavaleiro Andante, Mundo de Aventuras, Jacto, Tintin e outras, que existiram nos espaços de tempo intercalares, ou até em simultâneo.
A existência, na tradução do livro, da expressão tradicional "Histórias aos Quadradinhos", deve-se talvez ao facto de a (então) novel definição "Banda Desenhada" ainda só ter sido introduzida recentemente - meados da anterior década de sessenta - no vocabulário português, pese embora o facto de a obra original relacionar o conteúdo com as "bandes dessinées".
Não faço ideia se a tradutora, Maria Fernanda Margarido Correia, seria uma conhecedora do assunto. O que me parece - mesmo não conhecendo a edição original - é de que se trata de uma razoável tradução (adaptação, em alguns casos, às expressões da língua portuguesa, como é o caso do título, ou liberdades linguísticas, como seja traduzir t-shirt por "camisa de golfe"), feita para a portuense Livraria Civilização.
Um pormenor que valoriza o livro, logo à entrada, é o prefácio de (imagine-se) René Goscinny. E que diz ele?
"Ah! O que se disse, o que se escreveu sobre as histórias aos quadradinhos! Defendida por uns, desdenhada por outros, atacada, respeitada, analisada, estudada, repudiada, admirada, vilipendiada, a história aos quadradinhos tornou-se suficientemente importante para ter as honras das iniciais: ela tornou-se a H.Q. (...)"
Se na tradução estivesse banda desenhada e BD, em vez de histórias aos quadradinhos e HQ (digo isto à revelia de amigos meus que respeitam essa antiga nomenclatura), o texto poderia ter sido escrito hoje, quarenta anos passados.
Também as referências a nomes sonantes de intelectuais franceses - Francis Lacassin, estudioso da BD, e Evelyne Sullerot, socióloga -, e aos primeiros eventos internacionais aqui apresentados como congressos, Bordighera em 1965, e Lucca em 1966 (ambos em Itália), como suportes de prestígio, poderiam ser hoje apresentadas como argumentos a favor da Banda Desenhada.
O livro divide-se em numerosos capítulos, de que destaco os seguintes:

As grandes etapas
Os subtítulos são esclarecedores: "A pré-história", "Os verdadeiros começos", "O período de adaptação", "A explosão das histórias aos quadradinhos", "A história aos quadradinhos reencontra a sua aspiração".
Em alguns destes capítulos há afirmações discutíveis, hoje em dia, comparando com os pontos de vista de outros investigadores. Por exemplo: nesta obra é dada como ponto de partida para a existência da BD as imagens de Épinal, datadas de 1820. Apesar de a discussão acerca da origem da banda desenhada ser infindável, é mais consensual considerar os álbuns editados pelo suiço Rodolphe Töpffer, com as suas próprias bandas desenhadas, sendo a Histoire de M. Jabot, publicada em 1833, forte concorrente a essa categoria.
Aliás, bastantes páginas mais à frente, é feita parcialmente justiça a Töpffer, mencionado como um dos antepassados da arte, que alguns franceses classificaram de nona.
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Incursão pela pré-história
"Os primórdios das histórias aos quadradinhos remontam à noite dos tempos... Não as faziam os homens das cavernas, quando se metiam nas entranhas da terra e cobriam as paredes com bisontes e renas a galope? Mais perto de nós, os hieróglifos retratavam, sobre os túmulos reais de Tebas, a vida dos faraós desaparecidos.
Não será a maior banda desenhada (*) do mundo a Tapeçaria de Bayeux, que conta, ao longo de setenta metros de sequências sucessivas, a epopeia dos cavaleiros normandos? E esquecemo-nos de mencionar a coluna de Trajano, dum imenso requinte, que inventou a banda desenhada(*) em espiral, cuja técnica parece nunca mais ter sido retomada! (..)"
Num pedaço de madeira gravada, de 1370 (a Tábua Protat), um centurião romano levanta um dedo na direcção da cruz (...) e curvado para a frente, declara: Vere filius Dei erat iste "sim, na verdade este homem era o filho de Deus". Da sua boca sai, qual graciosa voluta, um filactério, antepassado do "balão" das histórias aos quadradinhos modernas".
Deste modo, no decurso dos séculos, e a pouco e pouco, nasce uma nova forma de expressão. Com efeito, se juntarmos:
-a sucessão de sequências da Tapeçaria de Bayeux,
- o filactério da tábua Protat,
obteremos os dois componentes principais da banda desenhada (*).
A história da banda desenhada (*) provém do encontro destes dois elementos, ou, dizendo doutra maneira, é a relação dinâmica entre a imagem e o texto (...)"
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O perfume da terra ou a tradição francesa
"Entre 1934 e 1939 a França viu-se submersa por histórias aos quadradinhos americanas ou italianas.
A produção nacional esfalfava-se a imitar-lhes o ritmo, enquanto a organização americana, perfeitamente rodada, estava à altura de atacar os mercados estrangeiros. Cada história, já amortizada no país de origem graças a um sistema de revenda a cadeias de jornais, ficava por um preço sete ou oito vezes inferior ao das histórias francesas, como escreve Sadoul (...)".
O mesmo cenário se observa em Portugal, digo eu agora. Quando alguém barafusta pelo preço elevado a que se vendem os álbuns, desde há muitos anos que aponto este motivo, igualmente válido para as edições portuguesas.
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Os Estados Unidos atacam
Neste capítulo fala-se de várias séries que se notabilizaram em França (não esquecer que o livro foi lá editado e é de um autor francês), designadamente a série onírica Little Nemo, a surrealista Krazy Kat, a poética Gato Félix, a satírica La Famille Illico (como foi baptizada em francês a série americana Bringing up Father, de Geo Mc Manus).
As grandes agências estado-unidenses King Features Syndicate e United Features Syndicate (muitas vezes traduzidas no livro erroneamente por "sindicatos", como se fossem Unions, amenizado o erro comum da tradutora pelo facto de aparecer entre aspas) encarregam-se da difusão destas grandes séries, quer pelos jornais americanos, quer pelas revistas europeias, o que permite aos autores de BD auferirem boas remunerações.
Além das séries americanas acima mencionadas, várias outras tiveram sucesso contemporaneamente em França (e noutros países europeus, caso de Portugal, embora bem mais tarde) como aconteceu com Winnie Winkle, da autoria de Martin Michael Branner, naturalizada pelos editores franceses que a baptizaram com o nome de Bicot, apresentada a 6 de Janeiro de 1924 no jornal Dimanche Illustré.
E não poderia faltar referência a uma personagem do calibre de Popeye, célebre pelo seu "doping" vegetariano de espinafres, criado em 1929 por Elzie Segar.
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Tintin, Haddock e o seu pai
(Um aparte: todos os títulos dos capítulos deste livro estão em caixa baixa, o que voltou a estar na moda gráfica... Não há nada de novo sobre a Terra...)
Num livro de escritor europeu sobre banda desenhada não poderia faltar um capítulo dedicado às personagens de Hergé.
Os números citados por Jacques Marny, referentes a 1970, impressionam: "800 personagens, 20 milhões de álbuns vendidos: o mundo de Tintin continua a ser um dos domínios encantados da aventura".
Neste capítulo, o escritor reproduz conversas com Hergé, que responde a uma pergunta sua: "Como é que vejo Tintin? Como um rapaz de quinze anos. Pelo menos, desde o princípio que lhe dei oficialmente esta idade. Agora vejo-o como um adolescente de dezassete anos."
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Tarzan, senhor da selva
"1929. Nos Estados Unidos é o ano de grande depressão económica, que desfaz fortunas dum dia para o outro, lança na rua milhões de operários desempregados (...) 1929 é também o ano em que aparece, na história aos quadradinhos, uma personagem com a promessa de uma carreira brilhante: Tarzan (...)"
"Adventure strip", eis o nome que os americanos dão a esta faceta da BD, que valoriza o realismo, explorada por dois mestres do desenho e da composição gráfica: Harold Foster - o iniciador da ainda hoje famosa série - e Burne Hogarth, o sucessor imediato.
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Vários outros capítulos são dignos de análise: "Panorâmica dos heróis das histórias aos quadradinhos"; "Dois nomes com prestígio: Alex Raymond e Milton Caniff"; "Quando as histórias aos quadradinhos se põem a pensar"; "Quatro passos no erotismo"; "Literatura de elite ou de ilota?"; "A história aos quadradinhos, produto explosivo".
Aqui fica, muito resumidamente, uma síntese desta obra que, não sendo exepcional, merece leitura atenta.
GL
(*) Curiosamente, a tradutora usa várias vezes a expressão "banda desenhada", abandonando a de histórias aos quadradinhos. Por motivos estilísticos, para evitar a repetição cansativa?

Ilustrações no topo, de cima para baixo:
1. Capa, por A. Baganha
2. Tapeçaria da rainha Matilde, em Bayeux
3. idem, idem
4. Popeye, criado em 1929
5. Personagens criadas por Hergé
6. Tarzan, de Burne Hogarth
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Título português: Sociologia das Histórias aos Quadradinhos
Título original: Le Monde Étonnant des Bandes Dessinées
Autor: Jacques Marny
Capa de cartolina a três cores, com dobras na capa e contracapa
Dim. 13x19cm
Nº de páginas: 128
Data da edição francesa: 1968
Data da edição portuguesa: 1970
Editora: Livraria Civilização
Rua Alberto Aires de Gouveia, 27
Porto
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Quem estiver interessado em ver as cinco postagens anteriores, consegue-o com facilidade, bastando para isso clicar sobre a etiqueta "Livros sobre Banda Desenhada - Os meus livros" que está visível no rodapé

2 comentários:

  1. Caro Geraldes Lino,
    É curioso ter postado precisamente neste momento estas suas notas sobre este livro, quando me preparo para deixar as minhas sobre um verdadeiro monumento da sociologia em torno da banda desenhada (e não só - está para breve). Este livro, que também o comprei há anos, ainda miúdo, foi interessante na altura porque alertava para muita coisa (para mim), mas é um objecto totalmente ultrapassado nos nossos dias. Não se trata de um livro de sociologia, o que torna a tradução do título... étonnant! (como bem aponta no seu texto), nem é verdadeiramente um livro de história, já que a introdução atira com tudo o que pode para dentro do mesmo pote a ver se cola... Enfim. Mas eram outros tempos e eram livros feitos com muita boa vontade.
    Um abraço!
    Pedro Moura

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  2. Caro Pedro Moura
    Agradeço a visita e o comentário. De facto, o termo "sociologia" do título é forçado, detina-se talvez a "épater (ou étonner...)le bourgeois" dando uma aura de seriedade e profundidade à obra que ela não tem. Mas, para a época, em Portugal,tratou-se de uma boa surpresa.
    Fico a aguardar o seu texto acerca dessoutra obra que você menciona e julgo não conhecer.
    Um abraço!
    GL

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