terça-feira, março 22, 2016

Pitanga, um barbeiro herói de BD, a contracenar com o "Colega de Sevilha"





Aproxima-se o lançamento de mais uma obra protagonizada pelo herói de BD Pitanga, com o título O Colega de Sevilha, previsto para o próximo mês de Abril (Arranha-Céus Editora). 

Isto após um longo interregno nas aventuras deste barbeiro motorizado, cuja mais recente aparição tinha sido em 2003 (A Rapariga do Poço da Morte), após ter sido criado em 1985 por Arlindo Fagundes na novela gráfica La Chavalita - Pitanga Barbeiro a Domicílio.

Mas quem é esse tipo com nome de fruta brasileira? Trata-se de um dos raros heróis fixos da BD portuguesa, com a peculiaridade de ter um emprego humilde, coisa que não é muito vulgar nos heróis da banda desenhada, que são preferencialmente jornalistas, casos de Clark Kent, Jeff Cobb, Ric Hochet, Tintin, pilotos de automóveis (Michel Vaillant, Alain Chevallier) ou de aviões (Tanguy e Laverdure, Buck Danny, Dan Cooper)...

De facto, ser um barbeiro, mesmo com o aspecto cool de se deslocar a grande velocidade numa motocicleta, um autêntico motard, não impede que se considere que este herói, fora do seu tempo de aventura, exerce uma profissão algo depreciada e em vias de extinção (ou já extinta?), a de barbeiro, ainda por cima a domicílio. 

Fora isso, e remetendo-o para a sua condição de "herói de papel", conclui-se que se trata de um caso invulgar da BD portuguesa, pela sua espessura humana e persistência em protagonizar novas aventuras, mesmo que apenas de tempos a tempos - quer em romances gráficos de longa metragem editados em álbum, quer em episódios curtos publicados em revistas, jornais ou fanzines. 

Como estamos ainda em tempo de apresentação da novidade banda-desenhística, será bem-vinda a apresentação dos bastidores da produção que o autor apresenta no vídeo
https://www.youtube.com/watch?v=p-vbNRO4usw  


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ARLINDO FAGUNDES em entrevista publicada na revista  O Mosquito (nº11-V série-Dez.1985)




Arlindo Fagundes na Barbearia Matos, em Braga (já desaparecida), à espera do funcionário Pitanga 

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A seguir, reprodução da entrevista publicada na acima citada revista, em 1985:

"Pitanga, barbeiro a domicílio, tem encontro marcado com a aventura" - diz Arlindo Fagundes, ceramista e desenhador 

Arlindo Terra Fagundes - na BD, argumentista e desenhador - nasceu em Ovar, ao terceiro dia de Julho, há quarenta anos. No entanto, desde 1974 que vive em Braga. Alguma razão especial para essa escolha?

- Em primeiro lugar, e se calhar para encurtar a história, a minha mulher é de Braga. Mas, voltando um pouco atrás, eu vivia em Paris, onde estive oito anos e tal. Quando saí de lá, fui direitinho a Lisboa.
Mas Lisboa, quando se está longe muito tempo, a gente idealiza uma escala que já não corresponde à verdade... Já não é a Lisboa que a gente conheceu, os amigos desapareceram todos. Aí arranjei uma hipótese de trabalhar na TV no Porto. Isso foi determinante para a minha vinda para o Norte.

Pronto, está bem, Norte. Mas porquê Braga e não Porto?

- Simples. Em Braga, eu tinha os sogros, tinha instalações. Depois a minha mulher foi colocada em Braga. Como vê, foi todo um conjunto de circunstâncias que determinaram que fosse Braga, e não Famalicão, por exemplo. Está satisfeito?

Agora estou. Mas, claro, quero saber mais. Já que estou numa de apresentar um (quase) ilustre desconhecido - pelo menos nestas coisas da banda desenhada, até há pouco - aproveito para registar tudo o que for possível. A História da Banda Desenhada Portuguesa anda p'raí a ser feita, já faltou mais para aparecer. E o criador de Pitanga já lá tem um lugar assegurado...
Mas convém ajudar os futuros biógrafos, saber coisas do cidadão Arlindo Fagundes. Habilitações, por exemplo: Liceu?

- Sim, liceu, evidentemente. E a frequência do 2º ano da ESBAL, isto antes de ir para Paris.

Paris. O fascínio dos meios artísticos. A sedução de vivências diferentes... Paris. Uma etapa fundamental para os que eram jovens nos finais das décadas sessenta, uma experiência quase obrigatória para um aspirante a escritor, a pintor, a cineasta.
O que é que você fez por lá, Arlindo Fagundes?

- Fiz um curso de realização de Cinema. Tenho a carteira de realizador profissional. Só a carteira. 

Fito com curiosidade o meu interlocutor, olhar vivo, barba cerrada, cigarro permanente, camisola grossa, gola aberta, um certo ar de artista boémio. Foram as Belas Artes em Lisboa, foi a irreverência de comportamento e vestuário, foram os tempos com gente do Cinema, em Paris, foi o contacto com uma juventude contestatária. As marcas mais profundas ficam sempre por dentro, mas deixam vestígios cá fora...
Voltemos à realidade. Não se vive de sonhos, nem de recordações. Arlindo Fagundes já não está em Paris, está em Braga. Não sei se já alguma vez fez cinema - não me quero desviar nem alongar demasiado, deixo essa pergunta para outra ocasião - mas banda desenhada fez, já sabemos. Banda desenhada também é expressão artística, mas não é, em Portugal, forma de vida.
O que fará para ganhar a vida um homem que andou nas Belas Artes, que tem um curso de realizador de cinema? 

- Sou ceramista. Eu gosto mais de dizer artesão.

Ora aí está. Arlindo Fagundes faz cerâmica. Modela, pinta. Que motivação o leva a fazer banda desenhada nos intervalos?

- Se calhar faço BD para compensar o pouco prazer e as limitações que a própria cerâmica implica para mim. Fazem-se bonecos, de facto, mas são estáticos. E não dá grande possibilidade de narrar. Faço cerâmica para ganhar dinheiro. É o meu ganha-pão, embora o faça o melhor que possa e saiba, dignamente. E com grande sucesso. Já estou representado em Museus de Cerâmica, aqui e lá fora. No Brasil, por exemplo.

Mas voltemos à banda desenhada: como surgiu, quando surgiu, este gosto pela BD?

- Isso é preciso ir lá muito para trás. As primeiras experiências conscientes, com princípio, meio e fim, são coisas péssimas, que eu guardo em casa, só para mim. Umas coboiadas. Aliás, tenho uma que retomei mais tarde,uma história de cow-boys, comecei a fazê-la de novo, era muito no rasto de Jijé. 
Está completa a primeira versão. A melhorada deixei-a a meio.
Mas tenho mais coisas começadas, com uma prancha, duas pranchas. 
Tenho lá uma história de um naufrágio, do Lusitânia, ou Carmânia, qualquer coisa terminada em "ânia", não sei bem. 
Tinha outra história, baseada naqueles tempos esplendorosos do Benfica. Ia ser - não passou duma prancha a cores - a história duma campanha, dessas em que o Benfica foi campeão europeu.

E por fim apareceu Pitanga, barbeiro de luxo. Cinco dezenas e picos de pranchas bem acabadas, como se fossem feitas, logo de início, a contar com o álbum.
Todavia, Arlindo Fagundes não ignorava, à partida, as escassas possibilidades de publicação. O que o levou a apostar em "La Chavalita"?

- É difícil explicar. Olhe, eu ainda hoje continuo a achar que foi extremamente fácil. Ou melhor: estranhamente fácil. Mas é preciso não esquecer que eu já estava a trabalhar para a Editorial Caminho. Tenho aquelas ilustrações para os livrinhos dos miúdos. Ao fim de ilustrar uma série de aventuras, achei que era de atirar o barro à parede. Lá voltamos à cerâmica...

E às "bocas" à Pitanga! Continue.

- Responderam-me com uma série de reticências, muito pontuadas, quando lhes pus a hipótese de uma banda desenhada. Mas não me disseram que não. Que o melhor era experimentar fazer umas pranchas, para ver como era, como não era...
Um dia mostrei-lhes as duas primeiras da "Chavalita", mais umas tirinhas experimentais. E pronto. Disseram-me que era encorajador, não me disseram logo que sim, mas que havia possibilidades.
Fui fazendo e fui mandando, e à medida que ia mandando pranchas, as garantias iam subindo de tom.
Quando acabei tinha praticamente a certeza de que ia ter o álbum cá fora.

Um barbeiro - ou cabeleireiro, para não ferir susceptibilidades... - como herói de BD, é inédito entre nós. Sê-lo-á também, porventura, em toda a história da banda desenhada.
Como é que terá surgido a ideia para tão original personagem?
O autor da ideia - e da imagem - está a conversar comigo, num café, junto à Sé do Porto. É só perguntar-lhe.

- A primeira, é que eu gostava que fosse uma personagem original. Em segundo lugar chateia-me um bocado que os heróis de BD tenham todos profissões mais ou menos nobres: Oficiais da Força Aérea, Volantes profissionais, Repórteres... Não falando já dos super-heróis! Esses têm um super-estatuto.
Bom, dentro disto, tratava-se de encontrar um profissional de qualquer actividade mais prosaica: um cozinheiro, esteve para ser um taxista e, claro, um barbeiro, um barbeiro a domicílio. Neste caso tinha vantagens, por exemplo, em relação ao cozinheiro. Tinha certa mobilidade, podia ir ao encontro da aventura.

Em "La Chavalita", para além de Myriam, uma protagonista importante da história, há uma outra personagem feminina: Dalila Pente Fino, concorrente de Pitanga na profissão. Que tal se ela aparecesse um dia numa aventura ao lado de Pitanga? Ou até mesmo uma aventura a "solo"?

- Ora bem. "La Chavalita" tem muitas pontas, que eu deixei de reserva para um dia, se calhar, retomar. Uma delas é a Dalila. De resto, ela é uma personagem de primeira grandeza. Tem características para isso. Essa ideia que me dá de fazer uma história só com a Dalila não me desagrada. Ou com os dois, mas com Dalila em primeiro plano.

Se isso acontecer algum dia, mal saberá Dalila que eu tenho parte da culpa de ela se ver metida em tais alhadas. Será que também vai andar de motocicleta? 
A propósito, Pitanga é um grande acelera. Haverá nessa faceta algo que tenha a ver com Arlindo Fagundes?

- Absolutamente nada. Nunca passei da "Velossolex", que tem de se dar aos pedais para se subir.

Falámos ainda muito tempo. 

Contou-me do seu novo projecto, outra longa metragem do Pitanga,uma história passada na província, com milagres tipo "santinha da Ladeira", contrabando de armas... Título? Talvez "O Milagre de Pitanga".

Fala-se também de desenhadores: 

Fernando Bento, dos consagrados, Fernando Relvas - "um fulano que tem uma maneira de contar histórias a meu gosto", diz Fagundes - merecem-lhe especial admiração. 

E dos estrangeiros?

Pratt (evidentemente, como reforça o meu entrevistado), Bernet, Juan e Carlos Gimenez, Tardi, Bilal, Crepax... "essa tropa toda". Há ainda um homem que muito admiro (que me influenciou bastante) e que fez mexer muito a própria estrutura narrativa da bd: Goscinny.

E Banda Desenhada, o que significa para Arlindo Fagundes?

- Uma forma artística e cultural, autónoma e inteiramente válida. Ao mesmo nível que o Teatro, o Cinema, a Música, a Literatura.

Haverá algum tema que o atraia, que um dia gostasse de fazer em BD?

- Gostaria de fazer algo que fosse o reverso da medalha da banda desenhada histórica que se tem feito em Portugal. A história dos degredados, dos que se passaram para o outro lado, dos "malditos". Dos que ficaram por essa África, por essa Índia, e que tiveram uma importância histórica muito grande. 

E dos que ficaram por cá, também há muito a dizer. Um barbeiro a domicílio fala com muita gente, sabe muitas histórias secretas, pitorescas umas, dramáticas outras.
Pitanga e Arlindo Fagundes são bons cronistas da vida.

Geraldes Lino                               
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