quinta-feira, julho 20, 2017

Críticas e Notícias Sobre BD na Imprensa (XXXIII) - Homenagem a Corto Maltese por Francisco Louçã no jornal Público



Várias vezes o tenho dito, baseando-me na experiência: quanto mais elevado é o nível cultural das pessoas, mais a banda desenhada é admirada e considerada e, ao invés, quanto menor é o nível de escolaridade, mais elevado é o preconceito e a desconsideração pela BD. Para quem se insere neste último patamar cultural, a banda desenhada é mencionada como sendo apenas a "bonecada para as crianças" do Tio Patinhas ou do Pato Donald.

Muitos são os casos de individualidades de prestígio social, cultural e político que assumidamente são admiradores da arte sequencial. Francisco Louçã, professor universitário e comentador político na televisão, acaba de escrever (in Público, 19 de Julho de 2017) extenso artigo dedicado à singular personagem de BD Corto Maltese.
Com a devida vénia ao jornal e ao autor do artigo, reproduzo-o em seguida.

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Corto Maltese, 
50 anos depois

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Francisco Louçã
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Parece que Miterrand, perguntado sobre que personagens o impressionavam ou o seduziam, apontava para Corto Maltese. Matreirice, seria uma imitação mais elegante, mas escassamente menos narcísica, de um De Gaulle que afirmava que só temia a concorrência da popularidade de Tintin.
Cada um vinha do seu tempo e, se ambos sobreviveram com um "perfume de lenda", como escreve Umberto Eco sobre Corto, o facto é que foi Hugo Pratt quem marcou a imaginação que trespassa as fronteiras do espaço e da imaginação. Por isso, Corto Maltese é o herói moderno que sobrevive à sua contemporaneidade.
Talvez as pistas sobre este marinheiro maltês, filho de uma cigana de Sevilha e de outro marinheiro perdido, que nasceria em 1887 e cresceria no bairro judeu de Córdoba, ou seja, sem pátria, assistindo depois às guerras inaugurais do novo século, estejam por aí espalhadas: Italo Calvino participara na preparação de um guião de um filme, Tikoyo e o tubarão (1962, Folao Quilici), sobre uma criança que fala com o amigo tubarão, e horizontes oníricos desse tipo foram sendo esplorados por muitos autores (veja-se a "Balada" ou "Mu"); e, evidentemente, a literatura de viagens aventurosas, de Rimbaud a Jack London, povoara a juventude de Hugo Pratt. Pratt, aliás, cresceu na Etiópia, viveu em Buenos Aires e Veneza, e sobretudo, percorreu as fábulas em que se mistura com Corto, a que dá forma no dia 10 de Julho de 1967, com A Balada do Mar Salgado - fez agora cinquenta anos.
O maravilhamento de algumas figuras cimeiras da literatura com a BD, mesmo que a vissem como género menor, também não é de hoje e não se inventou certamente com Pratt. Steinbeck, que não era modesto, adivinhava provocatoriamente um Nobel para Al Capp, pela força do seu Li'l Abner, a representação encantatória do mundo rural norte-americano (e de uma simplicidade desarmante que levava a água ao seu moinho). Umberto Eco dedicou-se aos Peanuts e a Charlie Brown num livro, Apocalípticos e Integrados, em que descreve os enquadramentos de cinema na tira do desenho.
Pode-se perguntar então de onde vem o ciúme ou a curiosidade que escritores de mérito têm da banda desenhada. No caso do sucesso de Pratt, percebe-se de onde vem essa sensação: é que Corto Maltese é mesmo um romance em forma de apresentação gráfica. Aliás, Pratt explora decididamente esse vínculo e pisca o olho à literatura clássica: Pandora lê Melville, Slutter lê Rilke e Shelley, Corto cita Conrad e a Utopia de More e, ao atravessar as mitologias (célticas, etiópicas, caribenhas, argentinas, venezianas, o vodoo ou o que lhe apetece), ao escolher com quem se cruza (Butch Cassidy, o Barão Vermelho, Tiro Fixo, mas também Hemingway, Hesse, Joyce), vive aventuras que transcendem os limites do tempo. Nenhum romance pode pedir mais, se os traços são marcados, se as personagens vivem a sua vida, se nos surpreende, então é a melhor literatura. É certo que, sendo desenho, deciframos melhor nessas páginas alguma coisa do autor (Eco conta que a sua filha pequena, apresentada a Pratt, disse que ele era Corto), e portanto a mentira da literatura é vivida à nossa vista.
Mas Pratt morreu há vinte anos. Corto, que é mais teimoso, continua agora com o desenho dos espanhóis Juan Dias Canales (Blacksad) e Ruben Pellejero, em Sob o Sol da Meia Noite, já editado em Portugal (Arte de Autor, 2017), anunciando-se um segundo livro desta dupla, Equatoria. Discutir-se-á se outro escritor pode continuar Os Maias ou A Guerra e Paz e dir-se-á que não pode. Mas, neste atrevimento, Corto cruza-se com Jack London, encontra rebeldes irlandeses, sonha com Rasputine, destrói uma rede de tráfico de mulheres, percorre o Yucon - e nós imaginamos o resto e aceitamos a aventura.

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Os interessados em ver as 32 anteriores postagens deste tema "Imprensa - Críticas e Notícias sobre BD" (com início em 15 de Julho de 2005) poderão fazê-lo, bastando para isso clicar nesse item visível aqui por baixo no rodapé   

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