sábado, julho 28, 2012

Fanzines, esses desconhecidos - Efeméride






O fanzine Efeméride foi criado no invulgar formato A3 para homenagear personagens de banda desenhada criadas em tempos idos, e que foram atingindo, após o seu aparecimento - quer nos suplementos dominicais americanos, quer em revistas -  um número redondo de anos: Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay, teve início em Outubro de 1905, o que deu azo à comemoração da efeméride dos cem anos, tendo eu editado o primeiro número do fanzine Efeméride em Outubro de 2005, com o título Sonhos de Nemo no Século XXI, cujas pranchas constituiram uma exposição patente no Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora
O projecto desenvolveu-se com as obras Príncipe Valente no Século XXI (Nº 2 - Fevereiro 2007), Super-Homem no Século XXI (Nº3 - Junho 2008), Tintim no Século XXI (Nº4 - Junho 2009) e, finalizando a existência do fanzine, com  o nº5 dedicado a Corto Maltese no Século XXI (*), neste mês de Julho de 2012, quarenta e cinco anos depois do início da sua publicação, na revista italiana Sgt. Kirk, em Julho de 1967.

(*) Tal como acontecera com as pranchas do nº1, também as deste nº 5 deram azo a uma exposição, desta vez no Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, entre 26 de Maio e 10 de Junho de 2012

As imagens que ilustram o topo do "post" referem-se a (de cima para baixo):

1) Capa do fanzine, de Regina Pessoa
2) Prancha do episódio "Os dois Pratts", de JCoelho (desenho), David Soares (argumento)
3) Prancha do episódio "No séc. XXI? Aquilo já era esquisito no séc. XX", de Pedro Massano 
4) Prancha do episódio "O Vazio", de Carlos Páscoa
5) Prancha do episódio "Corto no Alentejo", de João Sequeira "JAS"
6) Prancha do episódio "Cliché", de José Pedro Costa
7) Prancha do episódio "Corto Maltese e as Mulheres no Século XXI", de Ricardo Cabrita
8) Prancha do episódio "Numa Praia da Linha", de Joana Afonso

Ficam aqui reproduzidas sete pranchas como mero "teaser" para os interessados em verem a totalidade das 43 que compõem o miolo do fanzine

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Para quem não conheça o zine, nem o venha a conhecer - a tiragem é de 150 exemplares apenas, e já só restam umas seis dezenas - reproduzo o meu editorial:

Corto Maltese alter ego de Hugo Pratt

Há muitas semelhanças entre Hugo Pratt, autor de banda desenhada, e Corto Maltese, herói de papel por ele criado. É um facto detectado pelos especialistas e pelos leitores mais atentos.

Todavia, um pormenor importante os distingue. Enquanto que Hugo Eugenio Pratt, como qualquer mortal, nasceu apenas uma vez - em Rimini, Itália, a 15 de Junho de 1927 -, Corto Maltese nasceu duas vezes, por muito estranho que isso pareça, mesmo para uma personagem de BD.

A primeira foi quando o seu criador ficcional e gráfico lhe marcou, como data de nascimento, 10 de Julho de 1887. A segunda teve lugar no acto concreto da sua aparição comopersonagem de banda desenhada, no primeiro número da revista mensal italiana Sgt. Kirk, em Julho de 1967. É nessas páginas que se publicam as primeiras seis pranchas da novela gráfica Una Ballata del Mare Salato.

Quando Corto surge, a sua imagem não corresponde propriamente à de um herói: ele aparece amarrado a uma cruz decussata em cima de uma jangada que voga ao largo das ilhas Salomão, em pleno Oceano Pacífico. E representa, naquela obra seminal, o papel de mero figurante.
Para cúmulo, as suas origens que posteriormente se vêm a tornar conhecidas, também não são brilhantes nem têm especial dignidade: nasceu em La Valetta, na ilha de Malta, fruto de relação casual entre a cigana andaluza Niña de Gibraltar, prostituta, e um marinheiro inglês da Cornualha, de passagem ocasional por aquela ilha mediterrânica.

Quanto a semelhanças entre a personagem e o criador, nenhumas até aqui, obviamente. Na realidade, elas detectam-se ao compararem-se com as características nómadas do seu progenitor artístico - neste caso, o autor da ficção -, visto que Corto, sendo marinheiro de profissão, desempenhará, ao longo da saga, o papel de aventureiro errante, protagonista de peripécias em África, nas Caraíbas, no Brasil, na Rússia, na Irlanda, em Itália, mais concretamente em Veneza, cidade pela qual se sente da sua parte um subtil fascínio.

Aqui, a semelhança é flagrante. Pratt, embora nascido em Rimini, passou a infância e parte da juventude naquela belíssima cidade do Adriático, que sempre considerou como a sua verdadeira terra deorigem.
E, tal como Corto, também ele viajou muito, tendo vivido mesmo em diversos países -além do seu país de origem, onde viveu a infância, permaneceu durante algum tempo na Etiópia, mais tarde na Argentina, onde trabalhou bastante na BD, depois no Brasil (Baía, Amazónia), e finalmente na Suiça, onde terminou o seus dias, vitimado por cancro, a 20 de Agosto de 1995.

Outras características coincidentes entre autor e personagem: ambos são atraentes e volúveis.

Quanto a Pratt, a sua vida amorosa iniciou-se na adolescência quando vivia na Etiópia, com uma jovem etíope chamada Mariam. Depois desta foi Fernanda Brancati, mas também Erika, Leonora Schena, e várias outras namoradas, até chegar às três mulheres principais da sua vida: Gucky Wogerer, de origem jugoslava, com quem casará em veneza, em 1953 (de cujo casamento nasceram Lucas e Marina) e se divorciará em 1957; Gisela Dester, de origem alemã, que será sua assistente e companheira; e Anne Frognier, de origem belga, com quem teve um filho, Giona, e uma filha, Silvina. Mas também teve uma filha com uma mestiça brasileira da Baía, e a seguir, numa breve passagem de vinte dias pela Amazónia, onde viveu com os índios Xavantes, por lá ficou um filho seu.

No que diz respeito a Corto Maltese, ele é um dos mais charmosos heróis de papel, capaz de impressionar fortemente as mulheres com quem se cruza - Pandora, Morgana, Banshee O'Dannon, Louise Brookszowic, a "bela de Milão", "Pezinho de Prata", entre outras -, e torna-se evidente a sua atracção por algumas, mas jamais se fixará em qualquer delas.

Isto para que - como confidenciou Pratt numa entrevista - Corto se mantenha sempre disponível. Astuto enquanto ficcionista, o autor criou-lhe uma situação especial, a de estar fortemente ligado a um amor perdido, estratagema digno de um criador de génio.

Mas talvez para o mostrar sensível a uma certa nostalgia amorosa, Pratt inculcou-lhe uma bem humana reacção: a de não conseguir apagar da memória a recordação da jovem Pandora, que conhecera em 1913 - tinha ele vinte e seis anos - numa ilha do Pacífico.

Uma outra afinidade entre autor e personagem advém do facto de já muito divulgado de Pratt ser maçon. Em Fábula de Veneza, percebe-se que só alguém conhecedor das praxes maçónicas e dos seus secretismos, poderia incluir, logo na página inicial, certas palavras porventura habituais naquelas cerimónias (proferidas por um encapuçado): "em nome da maçonaria universal, sob os auspícios da Grande Loja de Itália".

Ora, enquanto personagem, Corto igualmente participa, embora acidentalmente, numa reunião de encapuçados maçons. E quando ele comenta "por certo os senhores são da Pitágoras", depreende-se que tem conhecimentos na matéria, mesmo que sendo apenas "o profano Corto Maltese", como lhe chama o "irmão Scarpetton", "Mestre Secreto".

Há ainda um aspecto que mostra como o autor se espelhou na própria personagem: é sabido que Pratt, na sua errante e bem preenchida juventude, chegou a cantar em festas. E Corto também gosta de cantar. Constata-se esse pormenor no episódio Concerto em O Menor para Harpa e Nitroglicerina, quando sai da sua boca um balão de fala cheio de notas musicais, acompanhadas dos versos: "Hoje sou um javali/Sou um rei forte/e vencedor/O meu canto e as minhas palavras eram gratas noutros tempos..."

Restarão dúvidas de que Corto é o alter ego de Pratt?

Geraldes Lino     


Autores das bandas desenhadas (desenhadores e argumentistas) por ordem alfabética:
Alice Geirinhas; Álvaro; Ana Madureira; André Ruivo; ARechena (Andreia Rechena, Dona Zarzanga); Arlindo Fagundes; Carlos Páscoa; "Zíngr" (Carlos Zíngaro); Daniel Lopes; David Campos; David Soares; Falcato (Miguel Falcato); Ferrand (Ricardo Ferrand); Filipe Abranches; J. Mascarenhas; JCoelho (Jorge Coelho); Joana Afonso; João Chambel; João Sequeira (JAS); José Lopes; José Pedro Costa; Lam (João Pedro Lam); Luís Guerreiro; Luís Pedro Cruz; Machado-Dias; Marco Mendes; Maria João Careto; Mota (Pedro Mota); Nazaré Álvares; Nuno Saraiva; Paulo Monteiro; Pedro Massano; Pedro Nogueira; Pepedelrey (Elpep); Regina Pessoa; Renato Abreu; Ricardo Cabral; Ricardo Cabrita; Roberto Macedo Alves; Rui (Rui Pimentel); Santo (Ricardo Santo, Ricardo Santo Machado); Susa (Susa Monteiro, Susana Monteiro); Tiago Baptista; Vasco Gargalo; Victor Mesquita.

Capa
Regina Pessoa

Contracapa
JCoelho / David Soares

Design e paginação: Jorge Silva
http://almanaquesilva.wordpress.com
http://livingdeadcovers.wordpress.com
jorge.silva@silvadesigners.com

Tiragem
150 exemplares

Editor
Geraldes Lino
http://divulgandobd.blogspot.com
http://fanzinesdebandadesenhada.blogspot.com
http://geraldeslino.interdinamica.pt
geraldes.lino at gmail.com
Apartado 50273
1707-001 Lisboa

Números editados anteriormente, títulos e datas de edição:
Nº 1 - Sonhos de Nemo no Século XXI (Homenagem pelos 100 anos de Little Nemo in Slumberland) - Data da edição: 15 de Outubro de 2005

Nº 2 - Príncipe Valente no Século XXI - Data da edição: 13 de Fevereiro de 2007

Nº 3 - Super-Homem no Século XXI - Data da edição: Junho de 2008

Nº 4 - Tintin no Século XXI - Data da edição: Janeiro de 2009

Notas do editor:
Estes quatro números foram impressos em quadricromia, contrariamente ao presente nº 5, a preto e branco.

Justificação da homenagem a Corto Maltese:
Entre Julho de 1967, data do aparecimento da personagem, e Julho de 2012, data da edição deste quinto número do fanzine Efeméride, medeiam 45 anos.
Em jeito de homenagem, quarenta e cinco autores (43 desenhadores e 2 argumentistas), inventaram novas peripécias, trazendo o herói para o século que decorre e, apesar de viajante compulsivo, fazendo-o visitar novas paragens, inclusive Portugal, onde o seu criador esteve várias vezes.
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Ainda as diferenças de fanzine e revista


Aproveito o ensejo para tecer algumas considerações, mais uma vez, acerca do tema "fanzines", confusões e deturpações, e o que os separa das revistas comerciais.

Passando por cima da incompreensível tendência actual de nomear os fanzines pelo artigo feminino - apesar de até já haver verbete no dicionário da Porto Editora, desde a sua edição datada de Maio de 1998, estando portanto já oficializado o vocábulo -, vigora ainda entre nós o erróneo conceito de que o termo fanzine apenas se aplica a publicações de pouca qualidade gráfica, compostas por fotocópias ou, na melhor das hipóteses - mais actualizada - em cópias digitais, diferentemente do que se entende por revista, publicação impressa em offset, de qualidade superior. 

Ora sempre houve fanzines impressos em offset, de excelente aspecto gráfico, mesmo em Portugal - esta expressão "mesmo em Portugal" não pretende ser depreciativa em relação ao nosso país, apenas realça o facto de haver grande desconhecimento do que que se fez entre nós, desde 1972, Ano I do fanzinato português, com o aparecimento em Janeiro desse ano do nosso primeiro fanzine, o Argon.

Mas quem já esteve em Angoulême, no grande festival francês de BD, indubitavelmente o maior evento europeu do género, viu, no pavilhão dos fanzines, dezenas deles impressos em offset e vários com lombada quando mais volumosos, exibindo uma apresentação gráfica a rivalizar com quaisquer publicações profissionais, com chancela de grandes editoras comerciais.

Ora à conta do fanzine Efeméride - um dos quinze títulos que já editei - tenho ouvido com frequência o comentário: "isto é uma publicação luxuosa, é uma revista, não é um fanzine!".

Mantém-se ainda hoje, portanto - julgo que só em Portugal - este preconceito em relação aos fanzines. Esclareço de novo: uma qualquer publicação pode ter ISSN, depósito legal, até código de barras, e uma impressão gráfica de nível equivalente a qualquer revista comercial; mas - e a partir daqui falo do Efeméride - se não for editada por uma editora legalizada, mesmo de pequena dimensão , se quem a edita não o fizer para beneficiar dos lucros das vendas, se o seu editor e respectivos colaboradores colaborarem pro bono, isto é, não lhes seja paga a colaboração, se não tiver periodicidade, nem distribuição a nível nacional, ou, como acontece em alguns outros casos, tenha uma concepção gráfica irregular - por exemplo, mudar repentinamente de formato -, então, por uma questão conceptual e de diferenciação de géneros, deverá ser-lhe aplicada a classificação de fanzine .

Não há nesta classificação qualquer intenção depreciativa, porque, afinal de contas, um fanzine é um campo de liberdade para a criatividade, é a permissividade total para que a imaginação se expanda sem limites, a todos os níveis: desde o conteúdo e a forma das obras publicadas - de banda desenhada, ilustração, literatura - poesia e prosa -, ficção científica, música, cinema, teatro - ou seja, qualquer tema pode ser desenvolvido num fanzine. 


E na forma, pode ser modesto ou luxuoso, depende da disponibilidade do faneditor, ou até de uma qualquer associação sem fins lucrativos -que também as há a editar publicações que se inserem na categoria de fanzines -, visto que essas associações não vivem das vendas, mas sim de apoios de beneméritos ou de associados.        
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As anteriores postagens relacionadas com este tema podem ser vistas, basta para isso clicar no item Fanzines esses desconhecidos visível aqui no rodapé

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