Continuando na mesma justa onda de falar de O Mosquito na efeméride dos oitenta anos após o seu "nascimento", ocorreu-me reproduzir o artigo que escrevi para a revista Gerador (nº6 - Outubro a Dezembro 2015).
Nesse texto, embora não dedicado em exclusivo àquela quase mítica revista de banda desenhada (ou, recuando à fraseologia do tempo, de histórias aos quadradinhos), foco-a, com o intuito de associá-la ao primeiro herói de BD que admirei: Cuto!
Essa personagem, criada pelo autor (argumentista/desenhador) espanhol Jesús Blasco, era apresentada como sendo um ardina, a vender jornais nas ruas de Lisboa.
Na realidade, o juvenil herói tinha sido criado na revista (no "tebeo", como dizem os espanhóis), Chicos, com o curioso pormenor - que vim a saber muitos anos mais tarde pela boca do próprio Jesús Blasco na sua casa de Barcelona - de que a personagem, com o seu caracol sobre a testa, tinha sido baseada fisicamente no seu irmão mais novo, o Alejandro Blasco, miúdo reguila e atrevido a quem davam o carinhoso nome de Cuto.
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Todos na Gerador adoramos histórias aos quadradinhos ou banda desenhada, se preferirem. De uma estatística interna descobrimos que 90% dos nossos colaboradores já leu , pelo menos, uma aventura do Tio Patinhas ou do Tintim. Os outros 10% estão agora a descobrir que antes da internet havia a televisão e antes disso coisas ainda mais interessantes com nomes bem divertidos. Ave, Geraldes, pelo teu artigo que veio mesmo a jeito!
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NO MEU TEMPO NÃO HAVIA TELEVISÂO
Sim, por muito estranho que isso pareça à geração actual, houve um tempo em que a televisão ainda não tinha chegado a este país periférico, o que só aconteceria no já remoto ano de 1957, com grande atraso em relação a outros países.
Muito antes disso, nós, os putos do meu bairro lisboeta, tínhamos por entretenimento brincarmos aos caubóis, jogarmos à bola e ao berlinde, e ler/ver revistas de histórias aos quadradinhos - ainda não havia a expressão banda desenhada - que tinham títulos sugestivos para crianças e adolescentes, Papagaio, Mosquito, Diabrete, Cavaleiro Andante.
A minha preferência tinha ido para a Mosquito, já não faço ideia porquê. Comprava-a numa pequena papelaria da rua Morais Soares, e mal chegava a casa cortava-lhe com impaciência as páginas - vinham fechadas - para ver o que tinha acontecido ao Cuto, o primeiro herói de papel que admirei.
As peripécias em que se envolvia ainda permanecem indeléveis na minha memória. Cuto era apresentado na revista como sendo português, ardina de profissão. Só muito mais tarde soube, por leituras em livros especializados, que o valente miúdo, de caracol sobre a testa, tinha tido a sua origem na revista espanhola Chicos, de Barcelona, de onde também era natural o autor, Jesús Blasco. Assim se explicava tão invulgar alcunha.
Ignorava-o nessa fase da minha inocência, mas mesmo que o soubesse não creio que tivesse qualquer significado. Para mim o que importava era seguir-lhe as aventuras que lia/via avidamente, em especial uma intitulada O Mundo Perdido, onde Cuto fazia dupla com um adulto de boa aparência chamado Pedro de Lencastre. As peripécias em que se envolviam eram emocionantes - hoje considero que seriam classificáveis mais juvenis do que infantis, daí a profunda impressão que nos causavam. Como exemplo concreto recordo a minha angústia quando ambos, em pleno deserto, eram engolidos lentamente pelas areias movediças, ficando apenas visível a mão crispada de um deles. Morreriam? A habitual frase de rodapé era inexorável: continua no próximo número. Depois de vários dias de ansiedade, respirei, respirámos de alívio: os dois amigos tinham sobrevivido, e deparava-se-lhes uma cidade subterrânea, parada no tempo, em que os egípcios residentes ainda se vestiam como no tempo dos faraós, e onde protagonizariam uma emocionante embora anacrónica aventura.
Claro que estas aventuras entusiasmantes eram contadas a conta-gotas, duas ou três páginas em cada número. Para nós, pequenos leitores, alunos da escola primária - como se dizia na época - ou até para alguns mais crescidos, era intensa a ansiedade com que aguardávamos o dia da saída da revista. No meu caso tinha sorte, não esperava muito: O Mosquito, que era excepcionalmente popular, publicava-se duas vezes por semana.
Ainda hoje me espanto com a prodigalidade dos meus pais que, apesar de pouco abonados, me davam sempre os cinco tostões às quartas e sábados, dias de saída do jornal, como lhe chamavam os editores.
Havia mais um herói que muito me entusiasmava pela imponente figura e impressionante coragem chamado Tarzan. Esse era da revista Diabrete, que eu lia por empréstimo de outro puto. Além das lutas com inimigos de feroz catadura, impressionavam-me muito os desenhos, a poderosa musculatura de Tarzan e dos seus antagonistas. A certa altura tinha começado a reparar nos nomes dos desenhadores, e esse que tanto admirava, assinava Hogarth. Eu quase nem queria acreditar na minha sorte quando o conheci pessoalmente no Salone Internazionale dei Comics, del Cinema d'Animazione e dell'Illustrazione de Lucca, em Itália, muitos anos mais tarde, no já distante 1978.
Falando do meu entusiasmo pelos desenhos, que cada vez mais se acentuava, aconteceu-me em O Mosquito começar a ficar fascinado pelas ilustrações das capas, com cenas de grande dinâmica protagonizadas por figuras extraordinariamente bem desenhadas.
Cedo me apercebi do nome do ilustrador, que assinava E.T.Coelho, muitas vezes apenas ETC, e que atingiu níveis elevadíssimos de qualidade na extensa saga histórica O Caminho do Oriente, em figuração narrativa, como também nas adaptações às HQ (depois BD) de romances e contos, designadamente os de Eça de Queirós, publicados até ao fim da revista, em 1953.
Antes disso também já eu comprava o Mundo de Aventuras que tivera início em 1949, onde tomara contacto com novos heróis, todos eles de origem americana: Roldan (aliás Flash Gordon), Steve Canyon, Mandrake, Fantasma, Rip Kirby, Luís Euripo...
Dez anos depois chegaria a televisão, que para mim ficaria até hoje como segunda escolha, salvo honrosas excepções.
Ou seja: ficaram preponderantes na minha sensibilidade as imagens sobre papel em detrimento das mostradas num ecrã. Admito que a minha geração esteja em vias de extinção, não só pela ordem natural da vida, mas também pela supremacia avassaladora das imagens virtuais em múltiplos ecrãs portáteis.
Geraldes Lino
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Nota: As cores da capa da Gerador estão preparadas para o efeito 3D. Para o efeito a revista oferece óculos especiais.
Revista Gerador
Nº6 - Outubro a Dezembro 2015
Periodicidade: Trimestral
Editor: Associação Cultural Gerador
Avenida Infante Santo, nº60L, 3ºA
Lisboa
Director: Pedro Saavedra - pedro.saavedra@gerador.eu
Mestre de Obras: Tiago Sigorelho - tiago.sigorelho@gerador.eu
"Ele": Miguel Bica - miguel.bica@gerador.eu
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"cortava-lhe com impaciência as páginas - vinham fechadas"
ResponderEliminar--Cortava as páginas?! Vinham fechadas?! Caríssimo Geraldes Lino, se calhar deveria também explicar isto aos miúdos; não devem fazer ideia do que se trata.
Caro amigo Manuel Caldas
ResponderEliminarEscrevi este artigo para uma revista que tem por leitores gente nova maioritariamente, mas, presumo, acima dos vinte anos, por conseguinte não destinada a miúdos.
De resto, não me parece fácil explicar melhor, até tendo em conta que precisaria de ser uma explicação curta, dada a limitação de espaço para o texto.
Grato pela visita. Abraço.