sexta-feira, fevereiro 19, 2016

Dramatismo nas bandas desenhadas de "O Mosquito"


Tem-se andado a comemorar a efeméride dos oitenta anos passados sobre o início da revista infanto-juvenil de BD O Mosquito.

E apesar dos vários eventos em redor do assunto - palestras, colóquios, mesas redondas - há um aspecto que não tem sido focado: o da evolução do nível temático e, concomitantemente, do cada vez maior realismo das imagens de muitas das bandas desenhadas que se foram publicando ao longo dos dezassete anos de existência da primeira série da revista (1936-1953), inquestionavelmente a mais importante das cinco que teve. (*)

Pela minha parte, nas participações nos ditos eventos, tenho insistido no facto de o critério de escolha dos editores da revista ter sido bastante direccionado para uma superior qualidade gráfica, conseguida pela criteriosa selecção dos autores, nacionais e estrangeiros, a par de um patamar elevado na componente ficcional, comparativamente com as publicações congéneres coetâneas.

Tal importante pormenor deve-se à vontade de aumentar o nível dramático dos argumentos, a fim de acompanhar o avançar da idade dos leitores, conforme me disse o director da revista, Raul Correia.

Para aqueles que tinham começado a ler O Mosquito por volta dos seus oito anos, em 1936, dez anos depois, em 1946 - data do exemplar em que foi reproduzida a cena patente no topo do post - os leitores já teriam dezoito anos, o que implicava um bem mais elevado grau de exigência no que dizia respeito à consistência da trama romanesca.

Daí eu ter escolhido esta sequência em que o jovem Fred West, conhecido por Falcão Negro - desenhado por Eduardo Teixeira Coelho, sob argumento/guião de Raul Correia - é sujeito ao suplício indígena do "tronco encurvado", que lhe iria rasgar lentamente as costas. 

Uma cena que denotava um inusitado grau de violência, contrariando o preconceito, já existente nessa época - e ainda hoje não totalmente erradicada - de que a banda desenhada era (é) uma forma de entretenimento infantil.  

(*) Assunto de que aqui falarei noutro post.    

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Para ver postagens anteriores deste tema bastará clicar na etiqueta Violência/Tortura na BD visível no rodapé

5 comentários:

  1. Olá, Geraldes. Obrigado por colocar estas imagens acessíveis, e cuja informação permitem um acesso mais rápido à edição original, depois de ter citado esta cena na última Quinta-feira, na Amadora. Não deixa, de facto, de ser surpreendente encontrar uma cena explícita (o corpo emaciado do herói, o sangue, o rosto sofredor) desta natureza numa revista que, a um olhar desinformado, poderíamos considerar inócua. Todavia, dá-me a entender que haveria uma necessária correlação entre o facto de existirem cenas desta natureza com uma suposta maturidade. Mas não poderá ser isso apenas um efeito de superfície? Haveria de facto alguma sofisticação nesse tratamento: os "índios", ou "homens vermelhos", continuam a ser tratados como sub-humanos (têm "risos ferozes", falam por "mímicas cruéis").
    É claro quem discutindo isto fora da narrativa - que desconheço mas prometo ir ler -, poderá haver algum reequilíbrio "moral" algures. Estarei a dizer que muitas das culturas ameríndias não tinham formas de tortura? Claro que não. Mas pergunto, de forma genuína, se alguma vez o tratamento dos portugueses mostraria alguns dos nossos menos felizes traços civilizacionais.
    Não posso aceitar de forma alguma que isto possa ser visto somente como "algo da época", desculpando a forma diferenciada como dois grupos de seres humanos são tratados de acordo com a sua pertença étnica, ou melhor, no campo do "nós" e do "eles".
    Será esse tratamento "infantil"? Não. Mas é aí, parece-me, que a maturidade não está presente.
    Sempre a prender consigo, obrigado.
    Pedro

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  2. Olá Lino
    Tenho andado um pouco "por fora" da BD, uma vez que para lá desta há mais vida e outros apelos, mas não perco a oportunidade de visitar alguns blogs e comentar pouco, sendo o teu um dos que prefiro para deixar as minhas manifestações de alma.
    É interessante a abordagem que fazes desta "perplexidade", que é de facto violenta (principalmente para a época), tanto mais que o autor em causa sabia, como poucos, registar em texto e imagens o que entendia para construir uma boa história. Fazia-o, então, correndo aquele risco inerente à censura que então havia e que hoje não há. Não há dessa forma, entenda-se.
    Lendo o comentário anterior, não deixo de recordar um outro que me foi dirigido, não por este comentador, onde também era vilipendiado o texto de Salgari (eu apenas fiz a adaptação do texto e os desenhos) por este sentimento que estabelece ou pretende estabelecer, limites à dicotomia bons e maus, como se os autores não tenham o direito de escolher o "seu" lado ou reproduzir, ainda que no campo da ficção, certas violências, torturas e demais atropelos que - aí concordo - ocorreram e ocorrem do lado dos "bons" e do lado dos "maus".
    É muito difícil saber quem são uns e outros, principalmente quando a nossa etnia, civilização ou nacionalidade estão envolvidas, uma vez que estamos com os "nossos" e detestamos os "outros".
    Não sei se os índios, por quem tenho o maior respeito, publicam banda desenhada; e se o fazem, como é que tratam os colonizadores nos seus trabalhos, designadamente nos argumentos.
    Sinceramente, devo confessar: censurar um autor por criar uma obra onde deu largas à sua imaginação, ainda que dentro dos limites do seu conhecimento histórico sobre os acontecimentos narrados, extravasa a função crítica e penetra, como seringa da censura, na epiderme da liberdade criativa.
    Se entramos por este campo, teremos de excomungar todos os heróis e super-heróis americanos, que pretendem estar do lado bom e passamos a escrever e a desenhar apenas sobre as histórias inócuas da carochinha, dos campos verdejantes da Heidi, ou, para dar jeito a alguns, a mostrar a bondade dos índios americanos perante os seus colonizadores, que quase os levaram à extinção, o que não fez o autor desta BD: os índios, em vez de recorrerem à tortura, notificariam o rapaz com carta registada e aviso de recepeção, com direito a apresentar-se com advogado e a ser indemnizado por prisão ilegal.

    Carpe Diem

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  3. Viva, Pedro

    Como pessoa culta que é, sabe que uma parte dos preconceitos sociais - racismos, xenofobias, machismos, discriminação sexual - têm vindo a ser contestados ao longo dos tempos e até atenuados, graças aos sistemas democráticos, embora não totalmente erradicados - os vários tipos de "bullying" são, em certa medida, seus reflexos.
    Reportando-me à peça de BD sob análise, é inquestionável haver nela uma componente racista - o herói é branco e é bom, os vilões são os chamados "peles vermelhas".
    Apontando-a eu como prova de evolução ao nível das tramas ficcionais das bandas desenhadas publicadas numa revista classificada como infanto-juvenil, datada dos anos quarenta do século passado, tive a pretensão de pôr em destaque a intensidade emocional da cena, nada condizente com o anátema de infantilismo sobre a banda desenhada que se fazia na época.
    Claro que também se detecta bem visível o maniqueísmo, há os bons e os maus, com tendência para os estereótipos, e neste caso o racismo está implícito, tal como acontece com os filmes da época, em especial nos "westerns". Estas componentes estavam de tal forma banalizadas que até um autor com posicionamento político de esquerda, caso de Eduardo Teixeira Coelho, as usa para criar uma trama de maior impacte dramático.
    Agradeço a visita ao blogue, bem como a sua análise de elevado nível.
    Lino

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  4. Geraldes Lino21:17

    Viva, Costa

    A minha resposta ao teu comentário sobre o assunto está implícita na que dei ao primeiro comentador, Pedro Moura é, entre os escassos críticos de BD, um dos mais conceituados - não é por acaso que o seu blogue "Ler BD" está integrado no jornal Público.
    Mas de facto, os duelos de opiniões contraditórias entre autores de BD - ou realizadores de cinema, ou pintores, ou músicos, ou escritores, ou compositores de óperas, ou até realizadores de programas de TV - e os críticos (e neste caso da TV tornou-se exemplar Mário Castrim) são infindáveis e inevitáveis.
    Aliás, neste caso, Pedro Moura não se dirigiu a ti, mas tu, enquanto autor de BD, sentiste-te englobado no ponto de vista dele, em especial por causa de uma crítica de teor vagamente semelhante que recebeste por causa da adaptação de "Os Piratas do Deserto", de Emilio Salgari, tua mais recente obra de BD.
    Pela minha parte, considero que as discordâncias devidas a choques de opiniões e pontos de vista entre autores e críticos, mesmo com eventuais crispações, são salutares e democráticas.

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  5. Caro Lino,
    Obrigado pela resposta, que vai de encontro precisamente as minhas preocupações principais. De facto, terei de fazer uma leitura mais aturada e completa da obra de ETC, a solo ou não, para melhor compreender como é que são geridas precisamente essas ideias. Não se trata aqui de fazer acusações, claro está, mas também não a de criar meras desculpas por "ser do tempo". Devemos sempre lutar contra os preconceitos, e eu tento sempre identificar, por vezes falhando, aqueles que pautam a minha própria prática. Dito isto, aquilo que salta aos olhos neste trecho apresentado seria a confirmação dos preconceitos de sempre, de que o "nós" seria sempre pautado pela justiça e respeito à pessoa humana, e o "eles"os facínoras e selvagens que não compreendem os mesmos princípios. Ainda hoje esse mecanismo maniqueísta funciona.
    Contudo, creio que o Geraldes Lino tem toda a razão em que não se façam juízos de valor por atacado sobre toda e qualquer produção de banda desenhada de um determinado período, e gostei muito de aprender ou ver melhor que haveria uma espécie de acompanhamento de maturação da própria revista com os seus leitores, que a seguiriam. Isso é muito interessante e abriria caminho a uma pesquisa mais alargada. Haja tempo.
    Quanto às palavras de Santos Silva, pelo menos da parte do barrete que me julgo caber, penso que haverá uma compreensão diferente da palavra "crítica": esta não se cinge a um qualquer juízo de valor meramente estético, hipoteticamente fechado a meia-dúzia de instrumentos formais, mas antes a um diálogo que penetra no campo da ética também (se bem que esta divisão é, ela mesma, problemática, entenda-se). Ora não afirmo em momento algum pontos que pudessem indicar algo que tivesse a ver com censura, seja ela de que espécie for, mas antes do facto de que, quando uma obra existe no espaço público, deve estar aberta à sua leitura múltipla. E eu estava de facto a querer compreender qual a correlação entre maturidade e violência. Em nenhum momento digo que não deve haver violência, mas antes em não querer entender um mecanismo automático entre essa e o sistema de representação (étnico, ético, político, humano) que o enquadra. Caso contrário, então estaríamos de facto perante uma obra superficial, o que não me parece ser o caso.
    Obrigado,
    Pedro Moura

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