Georges Prosper Remi Remi nasceu em Etterbeek, Bruxelas, a 22 de Maio de 1907, festejaria hoje o centenário se fosse vivo.
Assistiu-se, nos dias precedentes, a um inusitado interesse dos média pelo criador de Tintin e várias outras personagens - entrevistas na televisão e na rádio, e artigos nos jornais. Curiosamente, nota-se nos entrevistadores (que, regra quase geral, conhecem muito pouco do autor e da obra) uma insistência obsessiva pelo facto de Hergé ter sido acusado de colaboracionismo com os nazis que invadiram a Bélgica.
Ora esta ideia que, a certa altura, começou a espalhar-se, é injusta, com raizes geradas pela posição conservadora inicial, detectável nos primeiros episódios de Tintin. Com efeito, Remi começou a trabalhar no diário XXe Siècle, um jornal católico de direita, portanto conservador, onde, no suplemento semanal Le Petit Vingtième, destinado à juventude, apareceu pela primeira vez Tintin, a sua personagem mais carismática, no episódio Les Aventures de Tintin, reporter du Petit Vingtième, au pays des soviets, publicação iniciada em Janeiro de 1929, e onde se reflectiam os pontos de vista do patrão, o abade Wallez, que lhe passou para as mãos um livro ostensivamente sectário, onde, por exemplo, uma cena de votação na Rússia era decidida sob ameaça de pistola.
O director do jornal, e do Le Petit Vingtième, depois da aventura que lhe encomendara com cenário na Rússia bolchevista, decidiu que Tintin iria viajar até ao Congo (Tintin au Congo), então uma colónia belga. E as cenas racistas e xenófobas sucedem-se, bem ao espírito da época (e será que esse espírito já se alterou?), com os nativos a falarem "à preto" - passe a expressão, inequivocamente racista, ao tempo muito usada, e que servia para fazer humor, tanto na BD como nos filmes ou nas anedotas...
Claro que estes dois primeiros episódios nunca foram esquecidos, nem pelos detractores de Hergé, nem pelo próprio autor.
Duas versões da capa do episódio Tintin au Congo, ambas editadas em 1931, cujos títulos variam ligeiramente da edição a aparecer primeiro, a de Les Éditions du petit Vingtième, para a edição da Casterman, meses mais tarde.
Como ele disse a Numa Sadoul, em 1983, no livro Entretiens avec Hergé:
"Para o Le Congo, tal como para o Tintin au pays des soviets, eu estava influenciado pelos preconceitos do meio burguês a que pertencia... Estava-se em 1930. Eu apenas conhecia daquele país aquilo que as pessoas diziam na época: «Os negros são crianças grandes... Felizmente para eles que nós [belgas] estamos lá! etc.». E eu desenhei os africanos segundo esses critérios, no puro espírito paternalista que era o da época, na Bélgica."
Estas palavras demonstram que Hergé já está longe daquela fase, e olha para ela com olhar crítico e distanciado.
Mas até muitos anos antes, em Le Sceptre d'Ottokar - iniciado no Le Petit Vingtième em 4 de Agosto de 1938, terminado a 10 de Agosto do ano seguinte, um tempo conturbado pela inicialmente previsível e posterior deflagração do conflito mundial -, ele criara uma personagem sinistra que baptizara por Musstler, cruzamento óbvio dos nomes dos ditadores Mussolini e Hitler, já nessa altura não restariam dúvidas de que a posição política de Hergé se modificara no sentido progressista.
Por conseguinte, pode classificar-se de abusivo o carimbo-chavão que alguns apressados e radicais comentadores portugueses lhe continuam a aplicar, muito influenciados pelo facto de ele ter sido preso em 1944 (embora libertado logo no dia seguinte), acusado de colaboracionismo. Isto porque, durante a ocupação da Bélgica pelos nazis, Remi tinha continuado a trabalhar na publicação das aventuras de Tintin no jornal Le Soir. Por exemplo, estava a ser reproduzido o episódio Les Septes Boules de Cristal quando, em 3 de Setembro de 1944, a publicação foi interrompida pela libertação de Bruxelas. E logo no dia 8, o "Haute Commandemement Allié" deu ordens para que todos os jornalistas que tivessem trabalhado na redacção dos jornais durante a ocupação, fossem interditados de exercer a profissão.
O que quer dizer que, tal como Hergé, toda a gente que escrevia (ou desenhava) nos jornais para se sustentar estava nas mesmas circunstâncias. Mas tal como os jornalistas, também médicos, professores, arquitectos, autores de banda desenhada, operários e agricultores, tinham continuado a labutar, para subsistirem. O que significaria, em última análise, que todos eles, todos os belgas, devido a esse facto, podem ser acusados de colaboracionistas...
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Nota importante:
Este "post" irá ser enriquecido com a inclusão de imagem do álbum A La Recherche du Trésor de Rackham le Rouge, versão a preto e branco publicada originalmente no jornal belga Le Soir, em 1943, que nunca antes tinha sido editada em álbum. O que aconteceu hoje, dia 22 de Maio, numa edição especial vendida com o jornal, e que me vão enviar de Bruxelas.
1 comentário:
Gostei do artigo Lino, realmente de uma maneira ou outra somos todos colaboracionistas das maiores atrocidades que se cometem hoje em dia, desde o momento que fugimos ás nossas obrigações como cidadãos, contribuindo para a miséria de outros, até ao facto de passarmos férias num paraiso tropical que sobrevive de mão-de-obra escrava convenientemente disfarçada... poderemos mesmo ser culpados de nos entorpercemos frente a um televisor com programas fáceis e até poderemos passar o resto da vida a ser juizes pouco ajuizados e tolos e... certamente opinativos.
renato a.
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