domingo, abril 17, 2016

Príncipe Valente, um herói a sofrer no potro



Indubitavelmente, o melhor amigo de um herói de BD é o seu autor, e se o herói em questão for o Príncipe Valente, logo de seguida lhe associamos o nome de Harold Foster.

Ora Foster, não só como desenhador da célebre obra clássica de banda desenhada, mas sobretudo enquanto criador da personagem no papel de argumentista/guionista, naturalmente que lhe imaginou incontáveis cenas de actos sublimes de bravura, que fizeram vibrar de emoção os milhares de admiradores desse imenso romance gráfico.

Todavia, consciente da necessidade de sobressaltar os seguidores da saga, pela introdução de momentos emocionantes, Foster não hesitou, por mais do que uma vez, em colocar o seu herói em situações-limite de chocante dramatismo.

Assim acontece num episódio em que o Príncipe Valente, após vitoriosos combates contra os terríveis hunos, tanto no castelo de Camoran, em Andelkrag, como mais tarde, nas montanhas, vales e desfiladeiros, acaba por ser preso em Pandaris, caindo sob as garras do cruel Piscaro, que o condena à terrível tortura do potro, a fim de o fazer denunciar o grupo dos "libertadores" que lutam a favor do duque Cesario.

É essa sequência de tortura do herói, ilustrada por Foster com assinalável realismo, que serve de mote ao presente post.

(Esta imagem foi extraída da notável edição de Manuel Caldas - a quem faço a devida vénia - sob a chancela de Livros de Papel, dedicada à obra "Prince Valiant, in the Days of King Arthur", anos 1939-40)       
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HAROLD FOSTER

Síntese biobibliográfica


Harold Rudolf Foster, Halifax, Nova Escócia, Canadá, 16 de Agosto de 1892 - Florida, Estados Unidos da América, 25 de Julho de 1982.

Nascido no Canadá, Foster deixou de estudar aos dezoito anos e começou a trabalhar para ajudar a família. Teve várias actividades, até pesquisador de ouro, antes de emigrar para Chicago, para onde viajou montado numa bicicleta.

Naquela cidade americana decidiu inscrever-se no Art Institute, em seguida na National Academy of Design e depois na Chicago Academy of Fine Arts. 

Quando terminou estes estudos artísticos, Foster trabalhou como ilustrador e publicitário. Até que teve oportunidade de iniciar-se na banda desenhada, numa adaptação da obra Tarzan, primeiro num curto período entre Janeiro e Março de 1929, mas em definitivo a partir de 1931, a trabalhar na personagem para os suplementos dominicais jornalísticos.

Em 1937 opta por criar o herói medieval Prince Valiant na sua totalidade, argumento e desenho. No biénio 1944-45, Foster acrescentou à prancha do príncipe uma tira, também localizada na mesma época, a que deu o título de Castelo Medieval.

Tratou-se de um trabalho esporádico, visto que o principal consistia em realizar semanalmente a prancha dominical dedicada ao Príncipe Valente, para o que chegou a trabalhar cinquenta horas por semana.

Na década de 1960, já quase septuagenário, Foster apoiava-se cada vez mais nos seus assistentes, até que, em 1971 ele cessou em definitivo de desenhar a série, embora continuasse a fornecer layouts a lápis ao seu sucessor, John Cullen Murphy até 1980. Mas foram de sua autoria muitos dos story lines (resumos) até meados dos anos 1970.

Como é do conhecimento geral, Foster nunca usou balões (nota do presente blogger: vi uma vez um, não me recordo em que episódio). Essa sua opção pelo uso em exclusivo das legendas talvez tenha sido por influência da BD clássica europeia.

Como seria de justiça, Prince Valiant proporcionou ao seu criador vários galardões, entre os quais o categorizado Reuben Award.

(Elementos coligidos em The World Encyclopedia of Comics, coordenada por Maurice Horn, obra editada por Chelsea House Publishers, Philadelphia, em 1998)      


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PRÍNCIPE VALENTE

Alguns elementos biográficos acerca do herói

"Não encontrei uma única conquista pela força que fosse duradoura. O que é que se mantém ainda das conquistas de Alexandre ou de César?
Com as conquistas só se conseguem tristes inimizades. Só utilizarei a minha espada em defesa da liberdade e dajustiça!"

Estas as belas palavras do Príncipe Valente, herói de gloriosas e fascinantes aventuras. Salpicadas também por episódios pitorescos, elas contribuíram para introduzir na banda desenhada o clima lendário dos grandes feitos da cavalaria medieval, e dos elevados princípios dos seus cavaleiros andantes.

Aguar, rei de uma antiga cidade nórdica de existência incerta, chamada Thule, vê-se obrigado a lutar contra os seus implacáveis inimigos, à frente dos quais está o usurpador Sligon. Mais fortes na circunstância, estes empurram-no para o mar. Como única saída, o rei, a rainha e um principezinho chamado Valente embarcaram num veleiro, com um pequeno séquito de amigos fiéis, procurando refúgio seguro ao longo das falésias da Bretanha.  

Assim começava o primeiro episódio da saga do Príncipe Valente, em 13 de Fevereiro de 1937. Para as impressões iniciais, esta cena não era muito favorável, mas em breve elas seriam melhoradas, ao ver-se o pequeno grupo, depois dessa viagem marítima bastante acidentada, combater e vencer os semi-selvagens bretões que os haviam atacado.

Após umas tantas peripécias relativamente breves, o pequeno príncipe de Thule cresce no curto espaço de alguns episódios. Quando se despede do pai, deixando para trás o país pantanoso, Val é já um desenvolvido adolescente.

Esta transformação, que ocupou um pequeno período da série, verificou-se entre 13/2/1937 e 23/4/1937, no tempo real.
Observando-se a última vinheta da décima primeira prancha, vê-se que Val já adquiriu o aspecto que o iria tornar famoso ao longo dos anos. Sente-se uma certa pressa na transformação, como se o seu criador tivesse acedido, quase a contra-gosto, em debruçar-se sobre essas fases da infância e adolescência do herói. 

Apesar de impaciente, Foster não deixa de enriquecer essas primeiras páginas com imaginosos epidios. O encontro com Horrit, a feiticeira, mãe do monstruoso Thorg, é um deles.
"Não há para o homem maior infelicidade do que conhecer o seu futuro", diz-lhe ela.
Mas a curiosidade de Val resiste à lúcida advertência, e ouve o que Horrit lhe diz:
"Aguarda-te já um grande desgosto. Irás ter muitas aventuras, travarás muitas lutas, e jamais encontrarás a felicidade".

Essas profecias não estão totalmente longe da realidade: quanto ao às grandes lutas, esse será o "leit motiv" da saga do Príncipe Valente; por outro lado, a sua vida tem tido realmente muitas coisas más de que a mais marcante terá sido a morte da mãe, que sucumbiu ao clima hostil do país onde se haviam refugiado. 
O seu exílio, que durou doze anos, e a morte de Ilene (Helena na versão portuguesa), o seu primeiro amor, foram outros tantos episódios envenenados de tristeza e revolta. Mas a vida do príncipe teve já momentos de felicidade, de que um dos mais importantes terá sido a participação numa pequena cerimónia que jamais esqueceu: o Rei Artur, tocando-lhe no ombro com a sua famosa espada, armou-o Cavaleiro da Távola Redonda, como reconhecimento da sua bravura e lealdade.

Outro desses momentos foi o primeiro encontro de Valente com Aleta, e, após muitas peripécias, o casamento. Também o nascimento dos seus filhos contribuíram para que, feito o balanço geral, o prato da balança penda claramente para o lado da felicidade.

No que se refere a coisas do coração, que são sempre, se não agradáveis, pelo menos emocionantes, Sir Valente também já teve a sua conta. Não é que tenha qualquer semelhança com Sir Gawain, o incansável conquistador, claro. Mas, entre desgostos, desenganos amores exaltados, de tudo conheceu o coração do príncipe.

No princípio, foi Ilene, a bela jovem de cabelos cor de mel, o saboroso primeiro amor de Valente, e também, simultaneamente, o grande amor de Arn. Mas Ilene morreu, e os dois príncipes, que apesar de rivais se haviam tornado amigos, construíram um monumento de pedra em sua memória.

É ainda de referir a sua fugaz atracção amorosa pelas irmãs Sombelene e Melody. Mas Melody apaixonar-se-ia por Hector e Sombelene por Angor Wrack, ex-captor de Valente. Por acaso será com este casal que Valente celebrará os seus dezoito anos.

Na realidade, porém, no seu coração havia persistido sempre uma visão, quase irreal, de uma loura jovem que lhe dera água quando, morto de sede e exausto, fora ter a uma misteriosa ilha.
A única prova de que não se tratara de uma visão, fora o papel que ficara no barco, assinado por Aleta.
O encontro seguinte seria bem real, completamente estragado por um mal-entendido. E finalmente, após raptá-la da sua corte, levado por negras intenções, Valente acabaria por ceder à inteligência, meiguice e infinita paciência de Aleta que, durante a longa viagem imposta pelo príncipe,lhe suportou as injustas afrontas. Casaram por fim, como era de esperar, e desta feliz e inquebrável união nasceram quatro filhos, entre os quais duas gémeas.

Ao fim de todos estes anos, o Príncipe Valente vai tranquilamente envelhecendo. Os seus filhos cresceram e Arn, o mais velho, é já o seu sucessor nas deambulações pelo mundo.
(Este, que é um dos aspectos mais originais desta banda desenhada, teve em Derib um seguidor, através de Buddy Longway e do seu filho).
As aventuras de Arn são o contraponto aos vários flashbacks provocados pelas recordações de Valente. Aventuras nunca vistas na juventude do Príncipe, vão assim permitindo mantê-lo no centro do interesse da série, tornando a sua vida num longo mas nunca fastidioso percurso.

A história do Príncipe Valente nunca sofreu qualquer interrupção. John Cullen Murphy, que ganhara nome com a personagem Big Ben Bolt (Luís Euripo em Portugal), fora substituindo gradualmente Harold Foster, tendo-lhe sido entregue definitivamente a série em 1971.

Murphy, que inicialmente seguia com razoável fidelidade o estilo do Mestre, começou a pouco e pouco a derivar para o seu próprio estilo, bem menos académico e perfeccionista.
Quanto a isso, Foster foi bastante benevolente quando disse, há uns anos: "Pelas cartas que recebo, sei que os leitores estão satisfeitos e tudo está a correr muito bem. Estou até a sentir uma pontinha de ciúme."
Seria interessante saber se manteve esta opinião até ao fim da vida. Pela nossa parte, pensamos que haveria muitos desenhadores bem mais adaptáveis ao estilo de Foster do que John Cullen Murphy, que acabou por perder o seu próprio estilo e não conseguiu fazer esquecer o criador original.
Geraldes Lino

Nota: Este artigo foi originalmente publicado na rubrica "Banda Desenhada" do extinto semanário O País, datado de 30 de Setembro de 1982.    

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