Atrevo-me a afirmar, mesmo sob o risco de criar controvérsia, que o conto gráfico (*) A Lei da Selva, realizada pela dupla Eduardo Teixeira Coelho e Raul Correia, é uma das melhores obras da BD portuguesa, tanto pela intensidade dramática, como pela beleza dos desenhos, e bem assim pela qualidade literária dos textos, respeitando a teoria estabelecida de que a banda desenhada é uma arte verbo-icónica, em que tem de haver harmonia entre o texto e a imagem.
Consta que a elaboração da sua trama ficcional terá tido por base, mesmo que remotamente, o romance Aventuras Duma Família de Leões (The Adventures of a Lion Family), do escritor sul-africano A.A.Pienaar, assim o afirma José Ruy, observador imparcial, que constata a forma como ele próprio, Eduardo Teixeira Coelho, António Cardoso Lopes Jr. "Tiotónio" e Raul Correia, em conversa nas reuniões que faziam na redacção de O Mosquito, tinham ficado positivamente impressionados com a leitura daquela obra.
E.T.Coelho terá sido o que mais concretamente reagiu ao impacto emocional, decidindo criar em sequências figurativas algo de semelhante ao fulcro da obra de Pienaar, e parece que de imediato terá também havido interesse da parte de Raul Correia em participar na componente da escrita dos textos das didascálias.
Do que não restam dúvidas - as informações de José Ruy são inegavelmente fidedignas - é de que Eduardo Teixeira Coelho (aka ETC), estudioso da anatomia dos animais, sobretudo ferozes, teve de imediato a tentação de criar uma figuração narrativa, lançando-se na tarefa com todo o seu talento.
É compreensível que o artista tenha acordado com o escritor que este se encarregasse da escrita das legendas, tanto mais que ambos tinham lido a citada obra, e estavam sintonizados com o espírito que dela emanava.
Mas torna-se óbvio, por vezes, que quem escreve as didascálias, um pouco à revelia do desenhador, complementa as imagens com informações que estas não transmitiam visualmente. É o caso da prancha 9 (página 15 do álbum), 1ª vinheta, onde se lê: "Naquela mesma noite em que estivera a espreitar a fogueira, o leão matou um negro e devorou-o". Ora nada disto se vê na imagem que preenche a vinheta, o leão apenas mata uma zebra.
É um facto inquestionável que parte importante do mérito da obra se deve ao texto de Raul Correia. No que se refere a este desfasamento em relação à imagem, o resultado é positivo, porque torna mais compreensível para o leitor/visionador a sequência em que o casal de leões ataca os guerreiros, apesar dos "fortes escudos de pele protegendo os corpos escuros e luzentes de suor".
Para além de complementar as sequências, também as descrições escritas pelo co-autor de A Lei da Selva são por vezes tão entusiásticas e empolgantes que conseguem ultrapassar a emoção transmitida pelas imagens. Assim acontece ao longo da descrição da luta entre o jovem leão e um leão adulto, que o mais novo acaba por vencer, numa sequência emocionante, reforçada pelo texto intenso e brilhante (pranchas 9, 10 e 11).
Outro exemplo flagrante em que a didascália descritiva sob a imagem é bem mais sugestiva do que esta: na 2ª vinheta da prancha 15 lê-se: "Entretanto a enorme serpente aproximara-se, lenta, rastejante, movendo os compridos anéis do seu corpo cilíndrico, numa série de curvas sinistramente silenciosas. A cabeça triangular, onde os olhos pequenos e ferozes faziam saliência, alteou-se com pavorosa elegância.".
Pese embora toda a perfeição do desenho de ETC, a descrição literária ultrapassa-a por vezes em brilho e riqueza de pormenores, criando movimento ("alteou-se com pavorosa elegância") onde apenas havia uma imagem imóvel. Ou transmitindo sensações odoríficas: "Nas árvores, os rebentos novos espalhavam um perfume ténue e suave". Mais uma vez, a componente literária acrescentava um pormenor inacessível à imagem. Mas, em última análise, completava-a.
A tradição na BD é a de que haja um herói. E também nesse pormenor A Lei da Selva corresponde à regra: aquele leão que restou da ninhada de três pequenos órfãos (prancha 7, última vinheta), resistiu a todas as dificuldades, desde a da básica subsistência à das lutas sucessivas que teve de travar, passa a ser o herói que nós, leitores/visionadores admiramos, o combatente a quem desejamos sempre a vitória, seja contra o abutre, a serpente, os porcos selvagens, o leopardo, ou, mais tarde, contra o poderoso búfalo.
Um exemplo raro e singular de figuração narrativa animalista realista na História da BD portuguesa, que teria permanecido esquecido nos exemplares da revista O Mosquito publicados em 1948 (nos números 904 a 943), não fosse esta iniciativa meritória e de grande nível do editor Manuel Caldas, através do seu selo editorial Libri Impressi.
Ressalto, em fim de análise crítica, mais um pormenor que valoriza a edição: a numeração das pranchas no topo esquerdo das páginas, um sinal inequívoco do cuidado meticuloso do editor.
Mas também não posso deixar de apontar um pormenor que considero negativo: na lombada do álbum apenas consta o título da obra, faltando os nomes dos autores.
Para terminar, uma nota elogiosa ao estupendo texto crítico de Domingos Isabelinho.
(*) Conto gráfico: Julgo que estarei a criar, na BD, uma nova expressão/definição, considerando que nunca a tinha visto antes. Opto por lhe chamar conto gráfico devido à sua relativamente curta extensão, menos de 50 páginas. Acima disso já seria uma novela gráfica, expressão que também uso mas sem ter nada a ver com a expressão anglófona "graphic novel", que, como é sabido, significa romance gráfico.
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EDUARDO TEIXEIRA COELHO
Biobibliografia
Houve quatro países onde o talento de Eduardo Teixeira Coelho - ou E.T.Coelho ou simplesmente ETC - teve aplicação e reconhecimento público: obviamente Portugal, embora apenas num período inicial de onze anos, Espanha, França, Inglaterra, e por último, mas de uma forma indirecta, Itália.
De resto foi neste país, na cidade de Florença, que viveu quase cinquenta anos, até 31 de Maio de 2005, derradeiro dia da sua vida, tendo mantido sempre a nacionalidade de raiz.
Experiências gráficas iniciais
Oriundo dos Açores, nascido em Angra do Heroísmo, Ilha Terceira, a 4 de Janeiro de 1919, veio para o continente na adolescência.
Após estudos numa escola industrial - talvez incompletos, não há dados fiáveis a esse respeito - que nada teriam a ver com o seu talento para o desenho, o jovem açoriano muito cedo teve oportunidade de ver algumas das suas primeiras experiências gráficas publicadas, como, por exemplo, uma pequena banda desenhada de índole humorística, em quatro vinhetas e com as falas inseridas em balões, impressa no jornal humorístico "Sempre Fixe", tinha ele dezassete anos.
Trata-se de mera curiosidade, irrelevante para a dimensão da sua futura carreira. De facto, os passos mais significativos a registar, como início dela, são as colaborações com as revistas "O Senhor Doutor", em ilustrações esporádicas de novelas, nos começos de 1942, mas muito especialmente - por vir a ser, em Portugal, o seu emprego a tempo inteiro - a que estabelece nesse mesmo ano com o "O Mosquito", semanário infantil, já com bastante prestígio na área das histórias aos quadradinhos, expressão pela qual, na época, eram conhecidas as narrativas ilustradas em sequências.
Em breve parêntesis, relembre-se que essas historietas, termo que também chegou a ser usado, passaram a ser denominadas, nos anos sessenta do século passado - provavelmente devido à forte influência da cultura francófona que se sentia na época - pelo galicismo "banda desenhada", adaptada de forma assaz forçada da expressão francesa "bande dessinée", que talvez se tenha inicialmente estranhado, mas que acabou por se entranhar em definitivo.
Por hipótese, um dos factores que poderá ter pesado nessa crescente adopção terá ver com o facto de os defensores desta forma de arte visual sentirem que a expressão "histórias aos quadradinhos", com a palavra final pronunciada algo chocarreiramente "códradinhos", soava pejorativa, além de uma conotação infantil erroneamente generalizada.
E.T.Coelho, brilhante ilustrador
ETCoelho (assim escrevia, ou melhor, desenhava ele o nome, sem pontos a separar as maiúsculas) iniciaria a sua colaboração com "O Mosquito" no nº341, a 23 de Julho de 1942, materializada num conjunto de quatro rostos que olhavam sorridentes para "uma lancha salva-vidas com motor de elástico", imagem publicitária dedicada ao lançamento, nesse mesmo ano, de um novo semanário, e continuou com tarefa de cariz semelhante em números posteriores, 342 e 344, sendo que neste último já aparecia a palavra "Engenhocas", ladeada por engraçada sequência composta pelo rosto de um jovem a olhar para as páginas de uma revista que se apresentava com aquele título, rosto esse que exprimia desconfiança na primeira imagem, interesse na seguinte, e satisfação na terceira e última. Trata-se de um pequeno exercício sequencial, não assinado - apesar de anónimo, o autor passou a ser, posteriormente, identificável com facilidade pelos seus admiradores - onde se detecta invulgar capacidade na definição fisionómica de emoções.
Percebe-se que são apenas breves experiências gráficas a servir de rampa de lançamento para maiores voos, que começarão a concretizar-se, especialmente em capas, ilustrações e até tiras sequenciais, trabalhos esses espalhados pelas revistas "Colecção de Aventuras" e "Engenhocas e Coisas Práticas". Aliás, neste último título, no número oito, consta magistral composição, também não assinada, mas de autoria indubitavelmente atribuível a E.T.Coelho, sob o título "A evolução do tanque através da História".
Ainda numa fase inicial, apresentando de novo um registo humorístico e caricatural pouco visível ao longo da sua obra, pode ver-se no nº347 de "O Mosquito", datado de 3 de Setembro daquele mesmo ano de 1942, um conjunto de três ilustrações de grande comicidade para o conto O Pequeno Vagabundo, escrito por outro nome de referência na galeria "mosquiteira", Orlando Marques.
Duas semanas depois, no exemplar 349, começaria a ilustrar Missão de Morte (Trecho do diário de um combatente), da autoria de A.S.L., com estilo vigoroso e de forte contraste claro-escuro, que continuaria a usar cada vez mais aperfeiçoado, em produção vastíssima nessa área. E várias outras ilustrações se seguiriam de imediato, numa evolução surpreendente, em especial as que serviram de complemento gráfico ao trabalho literário Alerta no Deserto, do novelista anteriormente citado.
O seu primeiro grande voo profissional concretizar-se-ia a 3 de Dezembro, ainda em 1942, na realização da capa a cores do exemplar nº360 daquele semanário.
Não há exagero ao considerar assim importante, para um jovem de vinte e três anos, que fosse ele o autor da imagem de um cavaleiro da Polícia Montada do Canadá, nessa capa de "O Mosquito", porque, embora despretensiosa, aquela revista tinha alcançado alto nível de popularidade.
Preço baixo, qualidade e tiragem alta de "O Mosquito"
"O Mosquito" apresentava aspecto gráfico modesto, e custava apenas cinquenta centavos. O preço era apresentado graficamente pelo número cinco desenhado sobre a palavra tostões, sendo o todo inserido num círculo negro.
Embora seja de crer que o seu custo, apesar de baixo, fosse elevado para os miúdos de famílias modestas, era mais barato do que quase todas as revistas congéneres suas contemporâneas. Exceptuando o "Diabrete", que surgira em 1941 com preço também de metade de um escudo, o "Tic-Tac" e "O Papagaio" custavam um escudo cada, o "O Senhor Doutor" e "Engenhocas e Coisas Práticas" , mais caros, subiam para um escudo e cinquenta centavos, importâncias hoje em dia irrisórias (de tão baixas, nem sequer têm equivalência na nossa actual moeda), mas que na época apenas eram acessíveis aos filhos de famílias mais endinheiradas.
Para além da certeira selecção das histórias aos quadradinhos publicadas, mais movimentadas e com menos discursos pedagógicos subliminares, não será de todo improvável que essa diferença de preço também tenha contribuído para a sua popularidade. Seja como for, a verdade é que "O Mosquito" constituiu inquestionável sucesso editorial, facto comprovado pelos números apresentados por alguns dos seus responsáveis - designadamente um dos seus directores, Raul Correia, e José Ruy, fiel colaborador -, em que são mencionadas tiragens atingidas meia dúzia de anos após o início, ainda hoje impressionantes, como seja 60.000 "mosquitos" por semana.
Desenhador infatigável
Daí o orgulho justificado que deveria sentir o novel artista, por ser nesta fase o único desenhador português a colaborar numa revista de tal maneira popular, tendo a seu cargo a ilustração de numerosas capas, de todas as novelas, assim como da rubrica Coisas do Arco da Velha.
Em todas essas tarefas demonstrava o artista açoriano grande destreza, atingindo logo a seguir um nível inigualável entre os seus pares portugueses, na colaboração que teve com Raul Correia, escritor das Aventuras de Jim West, em que E.T.Coelho ilustrou consecutivamente, com duas excepções apenas, os textos no interior da revista e respectivas capas dedicadas a esta extensa novela, iniciada no nº375, de 27 de Janeiro de 1943 e finalizada no nº392, de 27 de Março do mesmo ano.
Note-se que, nesta altura, "O Mosquito" era bissemanal, querendo com isto dizer que estas diversas ilustrações, bastante pormenorizadas e de invulgar beleza, com destaque para as personagens traçadas em grandes manchas negras a marcá-las vigorosamente, e para a elegância, correcção e dinâmica no desenho dos cavalos, tinham de ser feitas duas vezes por semana! Além do seu enorme talento, há que sublinhar a espantosa capacidade de trabalho e a rapidez de execução deste exímio esquerdino.
As primeiras bandas desenhadas de ETC
Todavia, faltava-lhe dar o passo seguinte,o de se iniciar no que decerto mais desejaria, realizar imagens sequenciais, fazer histórias aos quadradinhos, aquilo que ele, muitos anos mais tarde também aceitaria chamar banda desenhada. E, surpreendentemente, a sua estreia como banda-desenhista não se verificaria na publicação portuguesa onde já tanta ilustração tinha feito e muita admiração granjeara, mas numa espanhola da especialidade, a "Chicos".
Trata-se de um pormenor deveras insólito, quiçá premonitório de que o seu destino artístico se iria cumprir bem mais no estrangeiro do que no seu próprio país. O título do episódio com que finalmente se estreava, e não custa imaginar o frémito de entusiasmo com que terá folheado a revista, era El Hechicero de los Matabeles, estava-se em 1944, a 2 de Fevereiro, tinha o artista vinte e cinco anos, e continuava estranhamente apenas a ilustrar - de forma magnífica, com soberbos jogos de claro-escuro, e estonteante dinâmica na expressão corporal - capas e novelas de "O Mosquito", como acontecia no nº481 datado exactamente de 2 de Fevereiro de 1944, em cuja cobertura se podia admirar uma manada de cavalos em vertiginoso galope, e várias figuras de "cow-boys" nas páginas três e dez, desenhos não assinados - um frequente sinal da sua modéstia - ilustrativos da novela O Rancho do Sol.
Ainda mais estranho era o facto de, no mesmo exemplar, a páginas quatro e doze, aparecer a bd O Juramento de Dick Storm, numa concretização gráfica algo incipiente, mas assinada de forma bem visível pelo apelido Péon, a que mais tarde aquele artista acrescentaria o seu nome próprio, Vítor.
O tema era também localizado no Oeste americano, com "cow-boys" e cavalos, mas, uns e outros, relativamente toscos se comparados com os tais do autor não identificado - a que mais tarde se associou o nome de E.T.Coelho -, pareciam de jovem aprendiz de desenhador, e todavia tinham pequena diferença na idade, apenas os separavam quatro anos.
Claro que Vítor Péon iria evoluir posteriormente até ao ponto de se tornar um dos autores de referência na BD portuguesa, mas analisados agora à distância, em confronto de capacidades iniciais, ninguém terá dúvidas em admitir que Eduardo Teixeira Coelho demonstrava ter, logo à partida, um talento inato absolutamente excepcional.
Essa era uma realidade que, naturalmente, saltava à vista, tanto mais que em Espanha o artista voltaria a ser publicado, em Julho do mesmo ano, com a bd Un Jinete del Oeste. Por estranhas razões jamais esclarecidas - Coelho nunca gostou de falar muito de si próprio - a sua primeira banda desenhada em "O Mosquito", Os Guerreiros do Lago Verde, só iria começar a 28 de Março de 1945, mas, justiça seja feita a quem lhe fez justiça, a prancha inicial ocupava as duas páginas centrais impressas na vertical, a cores, ressaltando as figuras do português João Silva, a do africano Buana, e as de vários leões, todas elas de grande perfeição anatómica e excelente dinâmica.
Estava enfim lançado na carreira de banda-desenhista, em que com frequência, se iria identificar simplesmente pela sigla ETC (assim, não pontuada), fruto talvez do feitio brincalhão que lhe atribuía o seu amigo Camarinha, já falecido, que com ele privou na juventude, feitio que o tinha levado a assinar, ao longo do ano de 1944, algumas ilustrações, bem como capas para "O Mosquito", com os pseudónimos bizarros e bem dispostos de "I.P.Serafim", "Tôu-Tchai", "F.Postigo" ou, com o gozo por extenso, "Filadelfo Postigo".
Obra fecunda e versátil
A extensa obra que veio a realizar para aquela carismática publicação - marcante entre todas as congéneres portuguesas suas contemporâneas -, abrange grande variedade temática, facto perceptível com facilidade pela leitura dos títulos, como seja Os Náufragos do Barco Sem Nome, Falcão Negro o Filho de Jim West e O Mensageiro - ficando estes três em destaque pelo facto de neles ter feito uso do "balão" para inserir os diálogos das personagens, coisa rara no conjunto da sua obra -, O Grande Rifle Branco, O Feitiço do Homem Branco, Sigurd o Herói, Lobo Cinzento, A Moura e o Mar.
À parte este último título, que de imediato remete para uma história de cariz poético, percebe-se claramente que, no geral, se trata de temas de aventuras, passadas no mar ou nas vastas pradarias com "cow-boys" e "peles-vermelhas" como era natural na época, numa publicação dedicada em especial a um público infanto-juvenil.
Talvez por os directores - um deles, Raul Correia, outro valor naquelas páginas, simultaneamente argumentista - se aperceberem do facto de os leitores mais fieis, bastante numerosos, que teriam começado por volta dos dez anos a ler o "jornal" (na capa já tinha havido o slogan "Qual é o jornal mais bonito?") começavam a ter idade para apreciar ficções de maior complexidade, a verdade é que se encontram, logo nos anos 1946 a 1948, algumas bandas desenhadas que apresentam rigorosa elaboração ao nível do argumento, casos de O Caminho do Oriente - História da expedição de Vasco da Gama à Índia, de notável concretização estilística que a tornam uma autêntica obra-prima, classificável como a maior referência na História da Banda Desenhada Portuguesa, e A Lei da Selva, pela veracidade e elegância com que o artista retratou os animais selvagens, intérpretes exclusivos do episódio.
Em relação a O Caminho do Oriente, tem de se salientar igualmente o esforço artístico e físico que representou, visto que a obra, realizada entre 28 de Agosto de 1946 e 30 de Junho de 1948, nesses quase dois anos teve publicação ao ritmo de duas pranchas por número,ou seja quatro por semana (apenas com algumas interrupções entre Janeiro e Fevereiro de 1947), visto que "O Mosquito" manteve durante alguns anos, incluindo esse lapso de tempo, periodicidade bissemanal! E a acrescentar a isto, note-se que, em simultâneo, o artista desenhou Sigurd o Herói, de 6 de Novembro a 21 de Dezembro de 1946, e O Mensageiro, de 14 de Janeiro a 18 de Fevereiro de 1948.
De grande qualidade literária, ou não se tratasse dos conteúdos de novelas de importantes escritores portugueses, surgem nos anos 1950, 51 e 52, as adaptações de A Morte do Lidador, A Torre de D. Ramires (de A Ilustre Casa de Ramires), O Defunto, O Suave Milagre, O Tesouro ou A Aia, a constituírem peças demonstrativas de crescente classicismo, pela delicadeza do fino tracejado - a substituir as grandes manchas negras anteriores que ressaltavam contrastantes claros-escuros -, como revelam invulgar sensibilidade na concretização visual das cenas concebidas por Alexandre Herculano, a primeira, e por Eça de Queirós, as restantes.
Com o regresso de "O Mosquito" ao formato mais pequeno, no nº 1201, a 27 de Dezembro de 1950, tem-se a possibilidade de verificar que a beleza dos desenhos de Coelho consegue resistir a tão castrante redução, ao acompanharem-se as peripécias de Os Doze de Inglaterra.
Mais uma vez o artista trabalhava ao intenso ritmo de duas pranchas por número, quatro por semana, até Junho de 1951, data em que se reduz para uma apenas, perfazendo duas semanais. A obra termina a 29 de Dezembro desse ano, final de publicação das peripécias do Magriço, Álvaro Gonçalves Coutinho. Como quase sempre, o texto era de Raul Correia,outro incansável "mosquiteiro".
Um aspecto pouco focado tem a ver com as incursões do artista na área infantil propriamente dita, com histórias muito simples, algumas idealizadas por sua esposa Gilda Reindl Teixeira Coelho (também falecida este ano, quatro meses antes dele).
Nesta componente menos realçada, ele realizou, em imagens sequenciais de rara beleza, A Moura e a Fonte, A Moura e o Dragão e A Moura e o Mar, trilogia escrita por Raul Correia, publicada em "A Formiga", suplemento de "O Mosquito", em 1946 as duas primeiras, em 1949 a última.
Entre 1954 e 55 apareceram algumas criações destinadas aos leitores mais pequenos: A Filha do Moleiro (Rumpelstilzchen), Marina e o Papagaio, A Borboleta Verde e O Espírito das Nuvens, editadas directamente em álbum na colecção "Capuchinho Vermelho".
Igualmente em França teve significativa produção de numerosas narrativas gráficas dedicadas à infância, através da personagem Pipolin (herói da revista homónima), entre 1957 e 1963, demonstrando dominar com facilidade este bem diferenciado e bastante exigente quadrante estilístico.
Graças ao reconhecimento da sua versatilidade, E.T.Coelho teve múltiplas colaborações, dispersas por jornais (em "O Século", por exemplo, no seu enorme formato standard da época, há uma notável ilustração a cores a ocupar toda a primeira página de um número especial). Em 1947 participou em vários pormenores do Cortejo Histórico de Lisboa, organizado por Leitão de Barros. Desenhou capas de livros nas colecções Biblioteca dos Rapazes e Biblioteca das Raparigas. Fez rótulos, não assinados, mas com o seu traço facilmente identificável , para os licores da então muito conhecida Fábrica Âncora, espalhando assim, displicentemente, o seu inconfundível estilo por artes efémeras, porque não podia viver apenas de "mosquitos".
Um talento português além-fronteiras
Em meados dos anos cinquenta, após o desaparecimento de "O Mosquito" (no número 1412, de 24 de Fevereiro de 1953), que deixava incompleto S. Cristóvam, outro dos contos de Eça de Queirós com magníficas vinhetas, algumas delas, raras, modestamente assinadas por ETC, chega o momento em que o ilustrador - é uma classificação totalmente justa, porque, talvez não seja despiciendo lembrar, a banda desenhada representa uma forma de ilustração sequencial - resolve embrenhar-se na sua própria aventura, ir à descoberta de novos horizontes.
Tantas vezes lidara com aventureiros de papel, chegara para ele o momento em que, acima de tudo pelo desejo de sobreviver a trabalhar em exclusivo para a banda desenhada, se sentia impelido a partir para o estrangeiro, tal como também tem acontecido a cultores de outras artes.
E, em meados dessa década de cinquenta, o artista deixa o país - sabe-se agora que definitivamente.
Numa primeira experiência, vai até Espanha, visto que já conhecia a revista "Chicos". A seguir tenta Inglaterra, passa a residir em Richmond, e começa a trabalhar para a editora Amalgamated Press, mas em breve sente dificuldades na colaboração com a Fleetway (um ramo da Amalgamated).
Numa das suas raras confidências, E.T.Coelho queixou-se das exigências editoriais que lhe tentaram impor, ao ponto de lhe proibirem que desenhasse personagens com bigodes, ou até de substituírem por vezes a cabeça de Robin Hood que ele desenhava, por outras da autoria de um anónimo colaborador inglês.
Finalmente, foi em Itália, na cidade de Florença, que o nosso compatriota se fixou. Talvez por se sentir bem naquela atmosfera artística, porque em matéria de trabalho, foi muito pouco o que ali realizou, um tanto pelo facto de ser estrangeiro, pois que, apesar de por lá ter ficado a viver definitivamente, nunca abdicou da nacionalidade portuguesa.
E também não terá sido por falta de consideração pelo seu talento, reconhecido na obra que entretanto foi desenvolvendo noutros países, com relevo para França, porque no Salone Internazionale dei Comics, del Cinema d'Animazione e dell'Ilustrazione, de Lucca, evento italiano pioneiro dos salões internacionais dedicados à BD, foi distinguido em 1973 com o troféu "Yellow Kid".
Mas à falta de poder trabalhar no país onde se acolhera, foi com França que estabeleceu uma profícua ligação profissional: logo em meados da década de 1950, breves anos após ter saído de Portugal, desenvolvendo (sob o pseudónimo "Martin Sièvre", ou com o nome simplificado para E.Coelho, como aparece por exemplo, nos álbuns editados em 1981 pelas Éditions Vaillant) trabalho incessante e de grande qualidade em várias revistas, por vezes em simultâneo.
Onde colaboraria com maior intensidade seria na "Vaillant" (rebaptizada como "Pif Gadget" em 1969). Sob argumentos de Jean Ollivier ou Roger Lécureux, desenhou Ragnar le Viking (1955 e 56), Till Ulenspiegel (1956), Davy Crocket (1957), Wango (1957 e 58), Yves le Loup (de 1960 a 62), de novo Ragnar le Viking (desta vez de 1963 a 69), Robin des Bois (de 1969 a1974), Le Furet (1975 e 76), Erik le Rouge (1976 e 77), Ayak (de 1977 a 1984), um panorama que permite ideia aproximada da sua ininterrupta actividade.
Embora não tenha sido tão prolífico noutros países, já ficou dito que trabalhou em Inglaterra, onde, entre diversas outras histórias, algumas no género infantil, foi reproduzida a bd Knight of the Red Eagle (1957), uma adaptação de A Torre de D. Ramires, além do obrigatório Robin Hood. Para a Alemanha desenhou um herói de nome Gerfried, com aventuras na revista "YPS".
De forma indirecta, isto é, em reprodução de trabalhos já antes editados, está representado no Líbano, pois sabe-se que a versão francesa Robin des Bois teve reprodução esporádica em revista de Beirute, um tanto pela popularidade da personagem, decerto que também pela qualidade artística.
No Brasil, o nome de E.T.Coelho tornou-se conhecido por intermédio de Jayme Cortez, autor português ali radicado, que promoveu a publicação de obras - por exemplo, O Tesouro, conto de Eça de Queirós - que considerava representativas daquele que classificava publicamente de Mestre.
No que se refere aos reflexos que a sua enorme produção no estrangeiro teve em Portugal, várias das séries foram por cá parcialmente repetidas. Respeitando a impressão original a cores, há um único episódio de Ragnar nas páginas do "Cavaleiro Andante". Mas, substituindo a dispendiosa policromia pelo mais acessível preto e branco, há abundantes reproduções no "Mundo de Aventuras" (o mesmo Ragnar, além de Davy Crocket, Yves o Lobo, Cartouche, Ayak o lobo branco, Robin dos Bosques), e, escassamente, em "O Falcão" e "O Pardal". Nesta última revista, em 1961, entre Maio e Outubro, teve publicação parcial Yves o Lobo, sob o título Yvo, o Cavaleiro do Destino.
Ainda na colaboração com edições francesas justifica-se mencionar o título "Jeunesse et Vacances", onde ele desenhou doze aventuras de Cartouche, várias republicadas no "Mundo de Aventuras" (5ª série).
Depois de 1976 houve duas obras de grande amplitude, comercializadas em fascículos (e posteriormente encadernadas), pela editora Larousse, em que aparece um colaborador artístico de nome Eduardo Coelho.
Trata-se de Histoire de France en bandes dessinées uma delas, sendo a outra La Découverte du Monde en bandes dessinées (esta última traduzida e editada entre nós com o título A Descoberta do Mundo, Uma História Universal em Banda Desenhada, entre 1981 e 1984, pelas Publicações Dom Quixote.
Para a editora Hachette, após ter ilustrado diversos volumes da colecção "Histoire Junior" (alguns dos quais traduzidos para português), colaborou noutra obra importante em parceria com o seu habitual argumentista Jean Ollivier, La Mémoire des Celtes, de que sairam dois tomos entre 1985 e 86.
Em presença desta bibliografia, mesmo que obviamente abarcando apenas parte da sua colaboração para França, é indubitável que, seja como Martin Sièvre ou Eduardo Coelho, ele está incluído entre os grandes clássicos estrangeiros publicados naquele país.
Já em Itália, a situação em que sempre esteve, uma espécie de quase isolamento artístico, terá tido esporádica abertura com a publicação de uma bd sua na revista "Comic Art"(nº4-Out1984). Tratava-se da adaptação de uma novela de Franco Sacchetti, escritor italiano do século XIV, extraída da obra Il Trecentonovelle, editada parcialmente, catorze anos mais tarde no fanzine português "Preciosidades da BD" (nº1-Out.1998), com legendas traduzidas pelo próprio desenhador.
Continuando a analisar a escassa actividade em Itália, na área dos quadradinhos desenhados: não consta que tenha sido aceite, por qualquer editora italiana, a quadradinhização parcial que Eduardo T. Coelho fez do clássico e brejeiro Decameron, de Giovanni Boccaccio. Em contrapartida, a obra foi traduzida e editada no nosso país, em dois tomos, com datas de Novembro e Dezembro de 1988, pela entretanto extinta Editorial Futura.
Pesquisas históricas
Mas se, no que concerne à literatura gráfica - outra das denominações da BD - o artista português pouca memória deixou em Itália, já o mesmo não acontece com a investigação histórica. L'Arte dell'Armatura in Italia, editada em Milão em 1967, é obra de autoria creditada à parceria Eduardo T. Coelho e Lionello Boccia, arquitecto italiano. Posteriormente realizaram de novo obra em comum, sob o título Armi Bianchi Italiani, representativa de extensa pesquisa realizada por ambos os autores.
Esta faceta da sua curiosidade intelectual e gosto pela pesquisa relativa aos armamentos e armaduras, ficou bem patente na exposição levada a efeito em Florença, entre 22 de Abril e 14 de Maio de 2005, sob o título L'Acciar de Cavalieri, com o subtítulo Dall'armamento all'armatura nell'Italia del XII al XV secolo nell'opera di Eduardo T. Coelho.
Ainda relevando o seu trabalho de pesquisa, e posterior registo em ilustração, mas numa área bem diferente, é mister que se faça referência à obra A Arte de Bem Navegar - Navios Europeus do Século XIV ao início do Século XVI, livro bilingue (português e inglês) editado em 1999, por ele superiormente ilustrado e comentado.
Obras derradeiras e reedições posteriores
Voltando à figuração narrativa: em data relativamente próxima, 1996, o nome Edouardo T. Coelho - assim mesmo, com a perceptível alteração ortográfica - surge a assinar uma adaptação à BD dum texto de Gianfredo Angeli, Marino, il Santo del Titano, editado em álbum sob chancela de AIEP Editore, da República de San Marino.
Em França, as Éditions Glénat, iniciando em 2004 a colecção "Patrimoine BD", lançaram um álbum com o título Ragnar, contendo a reedição de dois episódios publicados originalmente há cinquenta anos, sendo um deles do herói mencionado no título do álbum, o outro de Till Ullenspiegel.
Na renascida revista "Pif Gadget" (2ªsérie, nº10), saiu em Maio de 2005, mês e ano em que o autor faleceria, uma história animalista, a cores, com argumento de Jean Ollivier, sob o título La Loi des Terres Sauvages.
Em Portugal, houve repentinamente um renovado interesse pela obra do ilustre autor, resultando daí a edição de dois álbuns com recuperação de obras publicadas originalmente em "O Mosquito": Os Doze de Inglaterra, edição da Gradiva, em Janeiro de 2016, e A Lei da Selva, edição de Libri Impressi, em Setembro de 2016.
Merecidas distinções públicas
A obra brilhante que este insigne artista realizou, ao longo da vida, transformou-o no autor português de banda desenhada de maior prestígio internacional. Nesta especialidade, o seu nome foi o primeiro, e único durante muito tempo, a ser incluído em enciclopédias estrangeiras, constando actualmente de várias francesas (por vezes com o nome deturpado para Edouardo Coehlo), e também americanas, italianas, espanholas e brasileiras.
O talento que espalhou numa imensa produção granjeou-lhe prestígio internacional, consubstanciado no seguinte palmarés:
Yellow Kid - Este troféu foi-lhe atribuído na qualidade de melhor desenhador estrangeiro do ano (1973), em Lucca, Itália, no então muito prestigiado Salão Internacional de BD, precursor dos eventos congéneres, em especial do de Angoulême.
Mosquito Especial - Troféu com que foi galardoado, em 1986, sem a sua presença, pelo Clube Português de Banda Desenhada.
Troféu de Honra - Recebeu-o pessoalmente, em 1997, no 8º Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora.
Património da BD - Foi nomeado para a atribuição deste novel prémio francês, criado em 2005 pelo Festival Internacional de Angoulême.
Prémio Especial 2005 do Júri do Central Comics - Portal da Internet, português, especializado em banda desenhada, dedicou-lhe o seu galardão máximo.
As citadas distinções representam o reconhecimento, pela parte de especialistas italianos, franceses e portugueses, da importância deste autor no panorama da banda desenhada europeia.
Pode dizer-se que Eduardo Teixeira Coelho obteve, ainda em vida - e é tão raro isso acontecer -, a consagração merecida, tanto pelo seu imenso talento, como pela coragem com que enfrentou o desafio de se atrever a viver, em dedicação praticamente exclusiva, de tão difícil arte.
Geraldes Lino
2005, 2016
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RAUL CORREIA
Síntese biográfica
Raul Correia nasceu em Lisboa a 11 de Dezembro de 1904, e faleceu na mesma cidade a 15 de Março de 1985.
Em 1936 foi co-fundador, com António Cardoso Lopes Jr, da revista O Mosquito, para onde escreveu novelas, argumentos e adaptações literárias para o desenhador Eduardo Teixeira Coelho, e encarregava-se das respostas aos leitores assinando "Avôzinho", pseudónimo com o qual também apresentava poesias.
Profissionalmente trabalhava no Hotel Avenida Palace, em Lisboa.
Após a reforma, em 1969, passou a trabalhar para a editora Amigos do Livro, para a qual fez traduções e foi autor de alguns livros.
Raul Correia visto pelo seu neto Alexandre Correia Gonçalves
Histórias do (meu) Avozinho...“Avô, desenha-me um “Teco teco”. Não sei quantas vezes lhe fiz este pedido. Mais de cem, seguramente. E mais de cem vezes o meu avô me desenhou um “Teco teco”…
Sentava-me a seu lado durante três ou quatro minutos, enquanto as duas asas e a fuselagem tomavam forma. Por último, desenhava o hélice a girar tão depressa que não se viam as pás… Uáu! Eu ficava de olhos colados à folha de papel a pensar como era possível desenhar daquela maneira. Feito assim, a 3/4, parecia mesmo que estava a voar dentro do papel! O Teco teco era um biplano da 1ª Guerra Mundial. Já tinha mais um!
(Assim se inicia um livro em preparação dedicado a Raul Correia pelo seu neto)
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