domingo, fevereiro 24, 2013

Coleccionadores e Colecções de BD (VII) - Virgínia Adelaide Tavares Peres



































Em tempos já distantes, o conservadorismo na educação dos jovens era muito acentuado, reflectindo bastante a orientação imposta pelo governo da época à área escolar, evidenciada, logo à partida, pela separação de sexos nos estabelecimentos de ensino secundário - liceus e escolas técnicas (comerciais e industriais) - em que, salvo raras excepções, nuns só eram admitidos rapazes, noutros apenas raparigas.

Os reflexos dessas estratégias eram evidentes no comportamento das famílias em relação à educação dos filhos, em variados aspectos, designadamente na separação que era feita quanto aos objectos de entretenimento dentro de casa: para os meninos e rapazes ficava a leitura de revistas de histórias aos quadradinhos - expressão antiga e tradicional, substituída, em fins da década de sessenta, por mais um galicismo, o de banda desenhada, nascido de uma parcialmente incorrecta tradução, da autoria de Vasco Granja, da expressão francesa "bande dessinée" -, enquanto que as meninas e raparigas eram orientadas para virem a ser donas de casa e mães, pelos brinquedos que lhes eram facultados - tachos, panelas e máquinas de costura, para a primeira função, bonecas, o respectivo vestuário e berços de bebé, a mentalizar as meninas para um futuro de mães e donas de casa, na sua maioria.

É um facto que, por tal atitude paternal, eram muito poucas as raparigas que liam revistas de BD, com raras excepções, ao invés dos rapazes, realidade constatável, por exemplo, nas habituais rubricas "Correio dos Leitores" que sempre existiram nessas revistas - eu próprio dirigi algumas, designadamente nas revistas Jornal da BD (onde usava o pseudónimo "Ardina"), O Mosquito - V Série (onde respondia aos leitores assinando "Mosquito"), e nas Selecções BD (ali era o bedéfilo). 
A maioria das perguntas, críticas e sugestões eram apresentadas por leitores jovens (e menos jovens também) do sexo masculino.

Daí ter ficado com forte interesse em travar conhecimento com uma excepção a tal stato quo da sociedade portuguesa: uma senhora, professora de profissão. Tinha-me sido indicada por um amigo, que a referenciou como sendo uma pessoa muito interessada em BD, com um acervo considerável e valioso de revistas de banda desenhada, portuguesas e estrangeiras.

Estando eu, na época, a entrevistar pessoas conhecidas no meio bedéfilo como coleccionadoras, para a revista Coleccionando, entrei em contacto com a senhora, que se prontificou a responder às questões que lhe apresentei.

Reproduzirei, em seguida - para facilitar a leitura - o trabalho que fiz para a citada revista, composta por duas partes: apresentação da professora/coleccionadora, e respectiva entrevista. 
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COMO ACHAVA O PIM-PAM-PUM  

UMA PÁGINA PRECIOSA, 

CORTAVA-A 

E GUARDAVA-A RELIGIOSAMENTE


 - recorda a Dra. Virgínia Adelaide Tavares Peres


Na galeria de personalidades que, de alguma forma, se podem associar ao coleccionismo de Banda Desenhada, aparece hoje, pela primeira vez, uma senhora.
Trata-se da Drª Virgínia Adelaide Velez Tavares Peres, licenciada em Filologia Germânica, professora liceal.

Muito embora não seja uma coleccionadora, no sentido vulgar do termo, a verdade é que esta senhora foi, desde muito jovem, assídua leitora de revistas da especialidade. Com efeito, aos dezasseis anos, ela já era indefectível entusisasta da BD. E isso aconteceu há algumas décadas, numa época em que havia tendência para considerar a Banda Desenhada como tema quase exclusivamente masculino.

É indubitável que a Dra. Virgínia Peres teve quem lhe proporcionasse a invulgar possibilidade de desfrutar revistas de grande qualidade, hoje consideradas raras. Ela terá sido, num meio assaz preconceituoso como era (e ainda é) o nosso, uma das poucas jovens portuguesas a ter um contacto tão intenso com a banda desenhada. Além disso - e também nesse aspecto poderá ter sido uma das pioneiras - houve uma fase da sua vida em que a nossa entrevistada guardava zelosamente as suas revistas. Justificava-se, portanto, fazer-lhe a pergunta habitual:

- Quando começou a coleccionar revistas de Banda Desenhada?

- Nunca coleccionei conscientemente. Quando comecei a interessar-me pela página infantil de "O Século" (Pim-Pam-Pum) ainda era criança. Mas via os "bonecos", compreendia a sequência, e pedia que me lessem a "história". Como achava aquela página preciosa, cortava-a e guardava-a religiosamente. Juntei assim um maço volumoso.
Foi esta a minha primeira manifestação de entusiasmo pela BD e, simultaneamente, a minha primeira experiência com o acto de coleccionar.  

- Quais as colecções portuguesas que tem?

- Não tenho colecções completas. Mas possuo ainda bastantes exemplares de "O Senhor Doutor", de "O Mosquito", e alguns outros (não tão numerosos) do "Tic-Tac", "Gafanhoto", "Papagaio", "Colecção da Criança" (que deu lugar mais tarde à "Colecção da Gente Moça"), "Texas Jack" e "Pisca-Pisca".  

- A Srª Drª tem também muitos exemplares de revistas estrangeiras de BD. A que se deveu esse interesse?

- Na minha fase de aluna liceal achei que seria útil o contacto com revistas estrangeiras, e considerei que a Banda Desenhada era aconselhável para esse fim. Comecei então a comprar o "Robinson", "Le Journal de Mickey", a "Filette" e "La Semaine de Suzette".  

- Deviam ser caras para nós, essas revistas. Tem alguma ideia de quanto custavam?

- Os preços oscilavam entre os $60 e os 2$50. Curiosamente, tanto o "Robinson" como "Le Journal deMickey", que eram revistas importadas, tinham preço ao inferior ao de "O Senhor Doutor".
Devo dizer que a qualidade do papel e da impressão deste último era superior à das revistas estrangeiras mencionadas. Aliás, "O Senhor Doutor" era um semanário caro para a época: 1$50 (um bilhete de cinema custava cerca de 5$00).

- Tem alguma recordação especial ligada a qualquer dessas revistas?

- Lembro-me da contrariedade que senti quando, em 1940, foi suspensa a publicação de Guy l'Éclair (*), na revista "Robinson". 
No sentido positivo, considero que "O Senhor Doutor" e "O Mosquito" proporcionaram momentos extraordinários de evasão a uma meninice monótona de filha única.
Mas, a essa solidão, e a um pai que entendia que a leitura é uma companhia inestimável, fiquei a dever o privilégio de ser leitora assídua de numerosas obras e dessas revistas que citei.

- Por que razão suspendeu o contacto com essas revistas? Houve algum motivo especial?

- Houve. Foi a Segunda Guerra Mundial. Ela veio cortar os sonhos de milhares de crianças, e, no que respeita ao "cantinho" da banda desenhada, a periodicidade das tais revistas estrangeiras tornou-se irregular, até que acabaram por desaparecer, pelo menos no nosso mercado.
Restava-me reler e manter aquelas "páginas mágicas" impecavelmente arrumadas, por ordem de edição.

- Essas revistas que coleccionava na sua infância nunca foram substituídas por outras, numa fase mais avançada?

- O "Pato Donald", em edição brasileira - cuja qualidade era então muito superior à de agora - veio substituir os semanários da minha infância. Mas, nessa altura, eu apenas concedia uma breve apreciação à revista, pois a finalidade principal era integrá-la numa parte das leituras recreativas dos meus filhos. 
Mais tarde, ao passarem a primeira barreira etária do Tintin (ou seja, os 7 anos) foi a vez de tomarem contacto com as aventuras deste "super-jovem". Ele veio talvez produzir neles uma emoção semelhante à que o Cuto, a Anita Pequenita, Rob, Guy l'Éclair (ou Flash Gordon, se preferir), Mandrake, Fantasma e muitos outros haviam produzido nas gerações anteriores.

- Mas a srª drª tem ainda uns tantos exemplares da preciosa revista "Eagle". Essa era também para os seus filhos, ou era a sua antiga "paixão" que renascia?

- Era também para os meus filhos. Quando chegou a altura de eles vencerem a barreira das línguas, procurei livros, mas também revistas estrangeiras de BD. 
No fundo, admito que procurava uma espécie de descendência àquelas que tanto me haviam entusiasmado em criança. São dessa fase (1964/65) os exemplares que ainda possuo dessa revista a que chama preciosa. 
Já agora, posso dizer-lhe que a comecei a divulgar também entre os meus alunos. 
Descobri, pela mesma altura, uma colecção americana que me ajudou a despertar neles o interesse pela língua que eu ensinava. Tratava-se dos "Classics Illustrated" (que mais tarde seriam em parte traduzidos para português e postos a circular no nosso país). Eles tinham, a meu ver, um duplo interesse: divulgavam obras famosas de autores de diversas nacionalidades, proporcionando à camada mais jovem uma forma de leitura tão do seu agrado - a Banda Desenhada.
Embora a qualidade gráfica das adaptações fosse bastante irregular, alternando algumas de bom nível com outras bastante fracas, foi assim que muitos alunos meus tomaram contacto com obras de H.G.Wells, Mark Twain, Dostoiewsky, Rudyard Kipling, Walter Scott, Charles Dickens, Júlio Verne, Goethe, entre muitos outros.

- Como é que conseguia dar as suas aulas, permitindo em simultâneo a leitura/visionamento desses clássicos adaptados à BD?

- De tempos a tempos utilizava um episcópio para projectar os desenhos e as respectivas vinhetas, que eram descodificadas pelos jovens espectadores. Eles sentiam-se felizes por poderem ler inglês de uma forma pedagogicamente agradável.

- Nessa altura, essa sua ideia de aproveitar a BD como auxiliar pedagógico era bastante arrojada...

- É possível. Mas hoje, como sabe, já é comum encontrar a BD inserida nos livros de estudo, tanto portugueses como estrangeiros...

- Qual foi a última revista de BD que coleccionou, acompanhando o ritmo da sua publicação?

- Foi o "Pisca-Pisca", ntre 1968 e 1970.

- Tem alguma recordação triste ligada às suas colecções?

- Sinto uma especial tristeza pelo desaparecimento inexplicável do tal maço volumoso do "Pim-Pam-Pum".
Também em relação a algumas dessas revistas que consituiam o meu "tesouro" de criança, cometi, em dado momento, um erro: foi quando permiti que os meus filhos lhe tivessem acesso. Não me apercebi de que eles eram ainda demasiado jovens para compreenderem o significado que aquelas páginas atraentes e profusamente ilustradas tinham para mim.
Muitas delas ficaram irremediavelmente perdidas...
Mas, neste último caso, penso que o desgosto sofrido valeu a pena, pois assim surgira neles o entusiasmo pela BD.                 

Entrevista por
Geraldes Lino 

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Imagens que ilustram o "post":

1. "O Senhor Doutor" - capa do nº 96, de 12 Janeiro 1935
2. "Obras-Primas Ilustradas" - capa do nº 4 (sem data), com a bd "A Ilha do Tesouro"
3. "O Mosquito" - capa do nº 531, de 26 Julho 1944
4. "O Gafanhoto" - capa do nº 38, de 21 Maio 1949
5. "La Semaine de Suzette" - capa do nº 27, de 5 Juillet 1951
6. "Bécassine" - BD impressa na última página da revista acima mencionada
7. "Pim-Pam-Pum" - capa do nº 688, 6 Abril 1939
6. Retrato da entrevistada, Drª Virgínia Peres
7. As duas páginas da revista "Coleccionando" onde está reproduzida a entrevista
8. Capa da revista "Coleccionando" - nº8, Agosto/Setembro 1984

Nota do bloguer: As revistas de BD que usei para ilustração da postagem são exemplares soltos do meu acervo.           

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Os visitantes interessados em ver os seis artigos anteriores poderão fazê-lo, clicando no item Coleccionadores e Colecções de BD visível no rodapé     

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