quinta-feira, setembro 27, 2007

Tintim e Hergé (IX) Centenário de Hergé (VIII)


Capa do nº 1, de Junho de 1985, da publicação editada pela Associação Les Amis de Hergé
(Nota: Apesar de ter sido comprado, nos anos 1990, no stand montado por aquela associação no Festival Internacional de Banda Desenhada de Angoulême, este exemplar foi fotocopiado pelos ADH, em virtude de a edição estar esgotada).

I – Elementos biobibliográficos de Hergé
Nasce a 22 de Maio de 1907, em Etterbeek, uma comuna da região de Bruxelas,
Georges Prosper Remi Remi, que se tornou conhecido no mundo da Banda Desenhada por Hergé, pseudónimo formado pelas iniciais do nome próprio Georges e do apelido Remi, G e R, mas invertidas, por conseguinte, R.G.
Entre 1914 e 1918. durante a Grande Guerra (com Bruxelas ocupada pelos alemães), Georges frequenta a escola comunitária de Ixelles, e torna-se escoteiro (em Portugal, a palavra escoteiro escrita com o refere-se à componente laica, visto que os pertencentes à componente religiosa escrevem-se com u, escuteiros).
1920 – O pai, Alexis Remi, era empregado numa loja de confecções para crianças, cujo patrão era muito católico, e que o pressiona para que Georges Remi faça os estudos secundários numa escola religiosa, o Institut S. Boniface, onde os professores eram padres.

Por esta mesma altura, a família tira-o dos escoteiros da Bélgica, os tais não religiosos, para o inscrever na Federação dos Escuteiros Católicos. Esta mudança causa algum sofrimento psicológico ao jovem.
1923 – Os seus primeiros desenhos, com a assinatura Georges Remi, aparecem no jornal escuteiro do Institut S. Boniface intitulado Jamais Assez.
1924 – É neste ano que, nesse jornal para escuteiros Jamais Assez, ele assina ilustrações, pela primeira vez, com o pseudónimo Hergé.
1925 – Começa a trabalhar, após terminados os estudos secundários, no Le Vingtième Siècle, um jornal católico politicamente bastante à direita. O seu director é Norbert Wallez, um abade, que o encarrega de tratar das assinaturas.
Em Julho de 1926, com dezanove anos, e sem quaisquer estudos de desenho, visto que o jovem Remi nunca quis ouvir Alexis Remi, seu pai, que o aconselhava a estudar desenho na Escola de S. Luc, preferindo ele o estudo autodidáctico através de livros especializados. Assim, Hergé inicia-se na banda desenhada com a série Totor C.P. des Hannetons (Totor C.P. dos Besouros, título com que foi publicada em Portugal na revista Tintin) para o jornal dos escuteiros Le Boy-Scout Belge, que desenha até 1930.

Totor pela evidente semelhança, prefigurava Tintin (visto que este ainda não existia). Mas é recorrente o costume de quem escreve sobre estes assunto, insistir na ideia de que Paul Remi, irmão de Hergé mais novo cinco anos do que ele, terá sido o modelo de Tintin. Mas tendo em conta que Totor apareceu antes de Tintin, eu diria que Paul Remi foi, primeiramente, o modelo de Totor e este irá servir, por sua vez, de modelo para a figura de Tintin. Aliás, já escrevi algures uma ideia que me ocorreu: Totor e Tintin terão sido os primeiros clones gráficos, com a particularidade de até os nomes terem alguma semelhança, pois ambos apresentam a letra T duas vezes.
Em 1928, Hergé é nomeado chefe de redacção do Le Petit Vingtième, suplemento semanal do diário Le Vingtième Siècle destinado à juventude, criado pelo director do jornal, o abade Robert Wallez em 1 de Novembro de 1928.
Les Aventures de Flup, Nénesse, Poussette et Cochonet, sob argumento de Desmedt, jornalista desportivo do Vingtième Siècle, é a sua primeira colaboração em BD para este suplemento. Esta série, de curta existência, raramente é mencionada, e nunca foi publicada em Portugal.
Graças a jornais mexicanos enviados para Bruxelas por um correspondente do Le Vingtième Siècle, Hergé descobre a série americana Bringing Up Father (publicada em Portugal sob vários títulos, um dos quais foi Educando o Papá), e entusiasma-se com a utilização dos balões de fala, além de ter sido algo influenciado pelo estilo do respectivo autor, o grande artista americano Geo McManus, que possuía um traço que se poderia classificar, avant la lettre, de "linha clara", visto que esse estilo acabaria por ser considerado como criação de Hergé.
Muito honestamente, o autor belga reconheceu essa influência, mas igualmente, e muito anterior, a sua admiração pelo estilo de Benjamin Rabier, e de Alain Saint-Ogan, autor da série Zig et Puce.
10 de Janeiro de 1929 –é uma data histórica na BD europeia: Hergé cria, para o Le Petit Vingtième, uma personagem de poupa e calças de golfe, a quem dá o nome de Tintin.
A sua primeira aventura intitula-se, precisamente, As Aventuras de Tintim no país dos Sovietes, e Tintim é apresentado como repórter com destino à Rússia soviética, ou, nas palavras de Hergé numa entrevista a Numa Sadoul, à Rússia bolchevista, como então se dizia.
De facto, é neste episódio que se vê, pela primeira e única vez, Tintim a exercer a profissão de jornalista-repórter, a escrever à máquina naquelas folhas de papel a que, no jargão dos jornais, se chamavam "linguados" (e que eu próprio usei nas minhas colaborações sobre BD em jornais, caso do Diário Popular, por exemplo).
Os desenhos desta primeira aventura de Tintin ainda eram algo incipientes, e algumas cenas tinham um violento cunho anti-soviético e bastante caricatural. Por exemplo, numa cena de votação, os participantes eram obrigados a votar na lista do partido comunista sob a ameaça de pistolas empunhadas pelos três membros da mesa de votos.
Convém notar que Hergé se baseou, para fazer o guião desta aventura, num livro que lhe foi recomendado pelo abade Wallez, livro esse intitulado Moscou sans voiles (Moscovo sem véus), escrito por um antigo cônsul da Bélgica na Rússia. Este episódio nunca foi redesenhado nem colorido, contrariamente ao que aconteceu com todos os outros.
De facto, as histórias iniciais de Tintin foram editadas originalmente em álbuns a preto e branco, com enorme extensão (por exemplo Tintin no País dos Sovietes tem 138 páginas), pois Hergé ia desenvolvendo a trama conforme lhe apetecia. Mais tarde, todas elas, excepto esta dos Sovietes, irão ser redesenhadas e coloridas, e também sintetizadas, de forma a terem apenas 62 páginas.
Para este importante trabalho, Hergé contou com a colaboração, em tempos diferentes em alguns dos casos, com vários artistas de reputação, nomeadamente Edgar Pierre Jacobs (autor da série Blake e Mortimer), Jacques Martin (criador de Alix), Bob de Moor (Cori le Moussaillon) e Roger Leloup (Yoko Tsuno).
Mas a verdade é que essa primeira aventura teve grande sucesso popular, o que levou o abade Norbert Wallez a organizar uma chegada triunfal, com uma multidão a assistir, na Gare du Nord, de Bruxelas, à chegada de um jovem figurante mascarado de Tintin, acompanhado por um cão fox-terrier, (a raça de Milu, seu primeiro companheiro de aventuras), aventuras essas que só acabarão com Tintin e os Pícaros, 23ª história publicada em 1976, quase 50 anos mais tarde (a 24º história, Tintin et l'Alph Art, foi publicada inacabada em 1986, três anos depois da morte de Hergé).
Praticamente em simultâneo com Tintin, Hergé criou em Janeiro de 1930, a série Quick et Flupke (Quim e Filipe na versão portuguesa)
Tintin no Congo foi a segunda aventura de Tintin, terminada em 9 de Julho de 1931. O Congo era então uma colónia belga, e os nativos congoleses são tratados de forma colonialista, quase racista, com os jovens negros a darem mostras de grandes limitações ao nível da inteligência, e a falarem de forma caricatural: "És tu, Siô Tintin? Eu poder sair?" (ou, na versão original, "C'est toi, missiê Tintin? Moi peux venir?"). Hergé justificará estes e outros pormenores caricaturais com o facto de, na época, haver o conceito generalizado de que os africanos eram uma espécie de crianças pouco desenvolvidas.
Esta segunda aventura foi publicada em Portugal sob o título Tim-Tim em Angola, na revista infantil O Papagaio.
Para terceira viagem, Hergé coloca Tintin na América (Tintin en Amérique), que iria ser a primeira história publicada em Portugal na já citada revista O Papagaio (com início em 16 Abril de 1936) cujo director era Adolfo Simões Müller, um nome importante da literatura infantil portuguesa da época, o qual acabará por estabelecer uma relação epistolar com Hergé, e até, no período da ocupação da Bélgica pelos nazis (entre 1940 e 1944), devido à escassez de alimentos, lhe enviará latas de conserva e outros comestíveis, como forma de pagamento dos direitos de publicação em Portugal. Um pormenor importante é o facto de essa aventura de Tintin ter sido publicada a cores n' O Papagaio, a primeira vez que tal aconteceu, porque até mesmo na Bélgica a edição tinha sido a preto e branco.
A aventura seguinte intitular-se-á Os Charutos do Faraó (na tradução literal portuguesa), onde, na primeira edição, vão aparecer dois polícias aparentemente gémeos, sob os nomes X-33 e X-33bis, que nas edições posteriores serão chamados Dupond e Dupont (um com D, outro com T). O que invalida, respeitando a lógica, a ideia de serem irmãos, visto terem apelidos diferentes!
Como sabem todos os tintinófilos, estas desopilantes personagens apenas se distinguem pelo formato do bigode. Eu diria mesmo mais: o formato do bigode dos dois polícias é ligeiramente diferente, sendo que o do Dupont (com T) tem as pontas na horizontal, a fazer lembrar a parte superior do T, enquanto que o Dupont (com D) tem o bigode com as pontas para baixo, a parecer um D.
É também neste episódio que surge outra figura impagável, o português Oliveira da Figueira, o branco-que-vende-tudo, como lhe chamam os árabes, um comerciante capaz de vender cubos de gelo no Polo Norte. Hergé terá sabido da frequência de nomes de árvores nos apelidos dos portugueses, e resolveu juntar logo dois, o que é extremamente invulgar na realidade, e lhe dá um efeito bastante cómico.
Com o O Lótus Azul, Hergé pretende que Tintin viaje até à China. Para obter informações sobre mais um país que não conhece, tem a sorte de ser posto em contacto com um estudante chinês da Académie Royale des Beaux Artes de Bruxelas, Tchang-Tchong Jen, que lhe fornece elementos sobre o seu país. Esta aventura funcionará como uma denúncia do conflito sino-japonês.
Nesta fase inicial, as aventuras de Tintin publicavam-se bastante regularmente, com cerca de 15 meses a separar cada uma delas. É neste ritmo que surgirão A Orelha Quebrada, A Ilha Negra e O Ceptro de Ottokar.
Após o início da publicação das aventuras de Tintin na Bélgica, no Le Petit Vingtième, o semanário católico francês Coeurs Vaillants passou igualmente a publicá-las. Todavia, os seus responsáveis consideraram que faltava ao herói da poupa uma família, de forma a poder ser tomado como exemplo pelos jovens leitores.
Por isso, pedem a Hergé para ele criar uma nova série, em que os pequenos heróis tenham familiares visíveis.
É assim que surge, em 1936, a série Jo, Zette et Jocko, título adaptado em português para Joana, João e o Macaco Simão.
Já no decorrer da 2 ª Guerra Mundial, em Maio de 1940, a Bélgica foi ocupada pela Alemanha. E, em consequência desse facto, o jornal Le Vingtième Siècle deixa de se publicar.
Hergé recomeça a desenhar Tintin para o suplemento Le Soir Jeunesse, do jornal diário Le Soir, que entretanto tinha passado a ser controlado pelos ocupantes alemães.
Ainda com a agravante de, devido às restrições de papel, aquele suplemento desaparecer, e a história O Caranguejo das Tenazes de Ouro ter passado a ser publicada em tiras no corpo principal do jornal.
É neste episódio que surge o tonitruante Capitão Haddock, que, "com mil milhões de macacos", vai ser uma das personagens deveras marcantes da obra.
Para aquele jornal Le Soir, e apenas em tiras, Hergé irá realizar mais as seguintes aventuras:
A Estrela Misteriosa, O Segredo do Licorne e O Tesouro de Rackham o Terrível. É neste último que surge o Professor Girassol, Trifólio Girassol, mais a sua impagável surdez.
Uma curiosidade recente: no passado mês de Junho, o ainda existente diário belga Le Soir lançou uma edição especial, vendida com o próprio jornal, em que, pela primeira vez, com total fidelidade, foram reproduzidas num álbum as tiras constituintes desta aventura de Rackham, le Rouge, tal como tinham aparecido originalmente naquele mesmo jornal
É em 1943 que Hergé obtém a colaboração de Edgar Pierre Jacobs, o futuro autor da famosa série Blake e Mortimer, que o vai ajudar a reformular os álbuns iniciais. Jacobs teve a seu cargo redesenhar os cenários e os uniformes de O Ceptro de Ottokar.
A aventura As 7 Bolas de Cristal iniciada ainda no diário Le Soir, acabou por ser feita apenas parcialmente neste jornal, visto ter sido interrompida a publicação em 3 de Setembro de 1944, com a libertação da Bélgica, e Hergé ter ficado impedido de exercer a única profissão para a qual estava preparado: a de autor-artista de Banda Desenhada.
Apenas em 1946 Hergé voltará a trabalhar, graças a ter sido contactado por Raymond Leblanc, um antigo elemento da Resistência, que lhe propôs criarem uma nova revista de bandas desenhadas, a qual se apresentará pelo título Tintin, aproveitando a fama da homónima personagem.
Em 26 de Setembro desse ano de 1946 surge o primeiro número do novo semanário, que mais tarde terá uma edição em França e, posteriormente (1968) também em Portugal, onde se manterá em publicação até 1982, sempre com o herói homónimo em publicação exclusiva (entre nós, em álbuns na língua portuguesa, por esses anos só se conheciam as edições brasileiras).
Nesta nova revista continuar-se-ão as aventuras do herói da poupa e calças à golfe: O Templo do Sol, As Sete Bolas de Cristal, No País do Ouro Negro, Rumo à Lua, Explorando a Lua, e todos as restantes até à derradeira, intitulada Tintin e os Pícaros, terminada em 1976.
Esse conjunto de 23 episódios que formam uma complexa rede de aventuras tem tido o reconhecimento como obra de elevada categoria.
Em Portugal, por exemplo, houve um evento intitulado Festival dos 100 Dias, integrado na Expo 98, onde se incluiu uma exposição no Centro Cultural de Belém intitulada Os 100 Livros do Século, escolhidos entre os editados desde 1900 por Fernando Pinto do Amaral, poeta e conceituado homem de cultura.
Entre as obras literárias seleccionadas estavam quatro pertencentes à Figuração Narrativa, vulgo Banda Desenhada: Tintin, Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay, Corto Maltese, de Hugo Pratt, e Astérix, de Goscinny e Uderzo.
Para quem julgue despropositada a inclusão destas obras compostas pelo binómio texto e imagem numa selecção dedicada à Literatura, esclarece-se que há estudiosos que defendem a expressão Literatura Gráfica como a mais correcta para definir a Banda Desenhada.
Principais influências reconhecidas por Hergé na sua obra, e o que ele pensava do estilo "linha clara"
Já referi anteriormente o facto de este banda-desenhista belga ter sido geralmente considerado como criador da linha clara.
A esse respeito tem todo o cabimento ouvir a sua própria opinião, numa entrevista que lhe foi feita por Benoit Peeters.
Após ter reconhecido a influência que sobre ele exerceram Geo McManus, Benjamin Rabier e Alain Saint-Ogan, Hergé acrescentou:
"A linha clara não é apenas uma questão de estilo de desenho. Naturalmente, o desenho é um aspecto importante, porque há que tentar eliminar tudo o que é graficamente acessório, de estilizar o mais possível, de escolher a linha que melhor ilumina a figura.
Infelizmente, nesta corrente de que estamos a falar, esta componente é habitualmente valorizada, em detrimento da história. Ora, a linha clara, não é apenas o desenho, é também o argumento e a técnica de narração. E eu creio – mas não vou dar exemplos concretos – que há casos em que o desenho é muito conseguido e muito legível, mas onde nos perdemos completamente no argumento".
Factos, opiniões e pormenores invulgares relativos a Hergé
3 Março de 1983 é a data do falecimento de Hergé, oficialmente noticiado como tendo sido por leucemia. Mas um dos seus biógrafos, Philippe Goddin, afirmou em tempos que a morte de Hergé terá sido devido a sida. Sabe-se que Hergé sofria de uma rara doença congénita que o obrigava a sofrer transfusões de sangue periódicas, e por esse facto não se estranha que possa ter havido uma contaminação.
De facto, Hergé, nos últimos anos de vida, estava constantemente a sofrer de gripes, pneumonias e bronquites.
Em Maio deste ano, à conta do centenário do nascimento de Hergé, foi dada grande visibilidade pelo jornal Le Figaro à notícia, dando-lhe um carácter sensacionalista, por
se tratar de uma personalidade de grande renome artístico.
Hergé nunca assumiu chamar-se Georges Prosper Remi Remi, apenas escrevia o seu nome como Georges Prosper Remi, talvez por não gostar da repetição. Só em 1998, o biógrafo hergeano Van Opstal, no seu livro Tracé Hergé, dá conhecimento deste pormenor invulgar, que equivale a um português chamar-se, por exemplo, José Ramos Ramos (e conheci alguém com este nome).
Em 1932 Hergé casou com Germaine Kieckens, que era a secretária do Abade Norbert Wallez. Ela foi, além de esposa, também sua assistente.
Mas, em 1956, Hergé enamora-se de Fanny Vlaminck, que trabalhava no seu estúdio como colorista. Por esse motivo, Hergé e Germaine divorciaram-se em 1960. Este facto foi bastante traumatizante para Hergé, devido à sua educação católica, que fez com que ele sempre considerasse esse momento um drama, por assim faltar à palavra dada. Entretanto, pelas normas impostas pela Igreja, só em 1977 pôde concretizar o casamento com Fanny Vlaminck.
Hergé não teve filhos, nem de Germaine, nem de Fanny.
Hergé colaboracionista?
Em finais de 1944, após a libertação da Bélgica, Hergé foi preso, sob a acusação de colaboracionista, pelo Mouvement National Belge e também pela Front de l'Indépendence. Mas nada se tendo provado, foi sempre posto em liberdade pouco tempo depois.
Apesar disso. há quem mantenha a suspeita de que Hergé tenha sido, a certa altura da ocupação alemã, influenciado por algumas personalidades com quem contactou, designadamente Léon Degrelle, que lhe fez a proposta de ele passar a ser o desenhador do movimento rexista, uma organização fascista financiada por Mussolini, o que Hergé recusou formalmente.
Ainda a propósito da posição ideológica de Hergé (que, partindo de uma atitude inicial conservadora, racista e reaccionária, foi evoluindo ao longo da vida e da obra até olhar o mundo de um ângulo mais independente e humanista), será interessante registar um pequeno excerto de um texto escrito por José Augusto França no jornal Diário de Lisboa, em 24 de Março de 1983, referindo-se ao autor belga que falecera há três semanas:
"(…) Um velho amigo a quem sempre estive anonimamente agradecido pelos pequenos prazeres que me deu com as aventuras do Tintin por esse mundo fora, em prol dos justos e para castigo dos maus – que tinham sempre certa duvidosa cor vermelha, desde a primeira das histórias, passada no «país dos sovietes», em 1929…
A ideologia era com o autor, e a verdade é que o Balzac também era reaccionário e não deixa, por isso, de ser quem é (…)".
José Augusto França também poderia ter falado do anti-americanismo de Hergé, muito em voga na época, latente em Tintin na América.
E sobre a sua evolução política, será justo recordar a figura de um tal Mussler que aparece n'O Ceptro de Ottokar (1938). Na vida real, a Áustria tinha sido anexada pela Alemanha. Em paralelo, no reino imaginário da Sildávia, o rei está ameaçado pelo ditador militar que domina a Bordúria, cujos soldados vestem à maneira nazi. E na própria Sildávia há um conspirador, o tal Mussler (mistura de "Muss", como Mussolini, e "ler", última sílaba de Hitler) que trabalha em prol do ditador. Bastante sintomático da posição ideológica que já começava a caracterizar Hergé. Mas voltando à acusação que sobre ele ainda hoje pende de colaboracionismo, e a favor da tese da sua inocência, é de realçar a consideração demonstrada por Hergé pelo membro da Resistência, Raymond Leblanc, ao convidá-lo para colaborar na tal nova revista Tintin.
As atitudes fundamentalistas tomadas por algumas forças políticas, após a libertação da Bélgica foram ao ponto, como já disse anteriormente, de interditar o exercício da profissão a todos os jornalistas que tivessem participado na redacção de qualquer jornal durante a ocupação.
E repetindo o argumento que já defendi noutro texto: segundo tal premissa, isso poderá significar que toda a gente que escrevia, ou desenhava, ou fotografava nos jornais, para se sustentar, estava nas mesmas circunstâncias.
Mas assim como os jornalistas, também médicos, professores, arquitectos, autores de banda desenhada – caso de Hergé, o mais conhecido autor belga – operários e agricultores, tinham continuado a lutar pela subsistência.
E poder-se-á acusar todos os belgas, – excepto os que tinham "corajosa e patrioticamente" emigrado – de terem sido colaboracionistas?
Todos nós, portugueses, que continuámos a viver neste país durante a ditadura salazarista, fomos coniventes com o fascismo?
Hergé misógino?
Misógino é, por definição, o homem que tem aversão às mulheres, que pode ir ao extremo da recusa de contacto sexual.
Como homem, Hergé, além de ter casado duas vezes, até consta que terá tido relações extraconjugais durante o casamento com Germaine. Com este comentário que reproduzo, não estou propriamente a louvá-lo, apenas a considerar absurda, enquanto comportamento da pessoa real, essa tese. E sabe-se como a vida real se reflecte na Arte e na Literatura.
Mas o facto de, na obra de Hergé em geral, e em particular na série dedicada às aventuras de Tintin, rarearem as figuras femininas, sendo que há apenas uma única mulher importante, a cantora de ópera Bianca Castafiore, já por vários críticos tinha sido referida essa possível, embora subtil, misoginia.
Mas nunca se tinha chegado ao ponto de se considerar Hergé claramente um misógino pelo facto de não utilizar personagens femininas influentes no desenrolar das histórias, com a já citada única excepção da Madame Castafiore, o "rouxinol milanês", que, para cúmulo caricatural, cria sucessivos "gags" com a estridência da sua voz a cantar a ária das jóias, da ópera "Fausto", de Gounod.
Essa sugestão, bem clara e assertiva, é feita pela portuguesa Ana Bravo na sua tese de mestrado, transformada em livro editado no início deste ano, sob o título A invisibilidade do género feminino em Tintin, em que ela sublinha o facto de a única mulher com importância na trama ficcional criada por Hergé ter uma imagem caricatural e pejorativa em relação ao sexo feminino.
Ora na galeria de personagens criadas por Hergé, praticamente todas elas têm uma forte componente caricatural. Começando pelo cão Milou, que comenta comicamente os factos e reage muitas vezes às situações de maneira inesperada e pouco consentânea com a sua espécie, e passando pelo Capitão Haddock, o que ressalta em quase todos os protagonistas masculinos das vinte e três aventuras, é a sua faceta mais imprevisível, geralmente cómica, mas nem sempre a mais simpática (o contacto inicial do leitor/visionador com Haddock não é propriamente sedutora), e a absoluta surdez do professor Girassol, se por vezes desperta a hilaridade, consegue também esporadicamente atingir a fronteira da irritação.
Afinal de contas, Hergé sempre compôs as personagens ao nível de estereótipos – é precisamente isso que acontece com a figura da Castafiore, de maneira alguma se sentindo que através dela estivesse a discriminar as mulheres –, extraindo de todos os intervenientes as características que melhor pudessem contribuir para a criação de uma atmosfera divertida, que acaba por ser a componente mais marcante do conjunto da obra, temperada quantas vezes por forte dose de louvor às facetas positivas do ser humano, como sejam a coragem, a fraternidade e a amizade
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João Paiva Boléo, crítico de BD no semanário Expresso, irá hoje apresentar a sua palestra intitulada Tintim em Portugal.
Isto na sequência das intervenções anteriores, a primeira a cargo deste bloguista, e a de ontem devida a Nelson Done, director do Festival Internacional de BD da Amadora.
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"Posts" anteriores da rubrica "Centenário de Hergé"
(XII) Set. 10 - Exosição documental Tintim e(m) Portugal
(XI) Julho 13 - Hergé e suas personagens em exposição na C.M.Odivelas - Centenário de Hergé
(X) Junho 25 - Castelos na Banda Desenhada (XX) - Fictício - Autor: Hergé - Centenário de Hergé - X
(IX) Junho 19 - Tintin em edições piratas (I) Tintin en El Salvador - Centenário de Hergé - IX
(VII) Junho 17 - Álbuns imprevisíveis e difíceis de obter (V) - Le Trésor de Rackham le Rouge (Centenário de Hergé-VIII
(VII) Junho 16 - Selos e Banda Desenhada- Centenário de Hergé - VII
(VI) Junho 14 - Lisboa na Banda Desenhada (VII) - Tintin em Lisboa - Autores: C. Moreno (desenho), C.Moreno e G.Lino (argumento) - Centenário de Hergé - VI
(V) Junho 14 - Postais com BD - A m/ colecção (II) - Autor: Hergé
(IV) Junho 13 - Tintim no fanzine Tertúlia BDzine
(III) Junho 12 - Tintin, herói de muitas Artes
(II) Junho 8 - BD Portuguesa em revistas não especializadas (XX) - Pedro Massano, José Carlos Fernandes, António Jorge Gonçalves - Centenário de Hergé (II)
(I) Maio 22 - Hergé (1907-1989) - Centenário de Hergé 2007

1 comentário:

Unknown disse...

Belo artigo de investigação e conhecimento. Parabéns Lino.

Hergé, enquanto homem e autor, revelou imensas facetas, umas mais claras, outras nem por isso, mas sobretudo o que se deve enaltecer é a Obra que nos deixou.
Só tenho pena que a malta mais nova não conheça o suficiente de Hergé: é que muitas das vezes limitam-se a dizer "Eh, pá não gosto!" Hergé é também ele uma personagem digna de um estudo aprofundado, e neste capítulo a literatura existente é bem vasta. Penso que se a maior parte das pessoas soubesse o que esteve por detrás do criador, do homem, da obra, a viriam com outros olhos.
Contudo não é necessário esse estudo aprofundado para se gostar de Hergé (que não é apenas TinTin).

Já agora, estou-me a lembrar de um artigo escrito por Vasco Granja, e que publicámos no CyberExtractus #0, cujo título era "Hergé não sabia desenhar", que recomendo vivamente, exactamente como início de uma mais profunda pesquisa. É que à medida que se vai lendo sobre Hergé, vão-se abrindo outras portas laterais, com outros autores e referências, que o Lino tão bem aqui indica, e que são também elas dignas de uma leitura mais atenta.
Estou a preparar (também eu) um fanzine de Homenagem a Hergé. Deve sair lá por alturas do FIBDA.
Abraços.