terça-feira, abril 30, 2013

Coleccionadores e Colecções de BD (VIII) - Ernesto Assis



 
 





Apesar de ter feito as entrevistas, que tenho andado a reproduzir, a coleccionadores de banda desenhada, há quase trinta anos, para uma revista já desaparecida, considero que elas continuam a ter interesse.
Isso porque, do meu ponto de vista, as opiniões expressas pelos coleccionadores, e as suas ideias acerca das colecções de BD, não serão assim tão diferentes das que poderão exprimir coleccionadores actuais.

Apenas haverá a dificuldade, nestas entrevistas recuperadas da revista Coleccionando - neste caso, o nº 9, datado de Outubro/Novembro de 1984 -, conseguir ter a noção do valor indicado na aquisição das revistas antigas mencionadas, onde surgem importâncias em escudos, centavos e até "tostões", palavras absolutamente estranhas para as gerações mais recentes, já nascidas no berço dos euros... 
Consola-me pensar que haverá visitantes deste blogue que ainda são desse tempo remoto da nossa antiga moeda, e saudosos como eu dessas colecções de histórias aos quadradinhos já desaparecidas, e que actualmente deixaram de ter sucessoras em Portugal (o mais que há é fanzines bem feitos, como é o caso do Zona).

Quando conheci Ernesto Assis - o entrevistado revisitado hoje - no Clube Português de Banda Desenhada, ele não era um coleccionador compulsivo na verdadeira acepção do termo, daqueles que se caracterizam por serem extremamente ciosos das suas colecções, sempre preocupados em colmatar as eventuais lacunas. 
Essa sua não característica fica bem clara nas respostas e descrições que faz. Todavia, uma outra faceta bem valiosa o caracterizava: o profundo conhecimento que demonstrava acerca de autores e personagens da BD.  

Em seguida reproduzo na íntegra a entrevista que lhe fiz nesse ano de 1984
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Se não fossem os coleccionadores
não se poderia hoje historiar a BD

- opinião de Ernesto Assis 

Na sua singeleza, esta afirmação constitui uma justa homenagem a todos aqueles que, obstinada e pacientemente, recuperam e guardam velhas colecções de BD.
Ela é bem demonstrativa da clarividência e justeza de julgamento de um homem que é, indubitvelmente, um dos pioneiros do estudo da Banda Desenhada em Portugal.

Ernesto Assis possui uma personalidade bastante curiosa. Apesar de ser, há décadas, um apaixonado da Banda Desenhada, ele é perfeitamente capaz de vender, por tuta e meia, exemplares de revistas - nacionais e estrangeiras - que terá comprado na semana anterior com grande sacrifício para a sua magra bolsa.
Também é homem para oferecer números antigos do Notícias da Amadora contendo artigos artigos seus sobre banda desenhada, ficando ele sem qualquer exemplar!

Ao longo da sua vida - iniciada em 26 de Setembro de 1931 - Ernesto Francisco Loureiro de Assis tem sido muitas coisas, entre elas pintor de letras. Mas a sua faceta que aqui interessa registar é a de ter sido um dos primeiros estudiosos a publicar artigos sobre BD na Imprensa.

Apesar de uma certa dispersão que o caracteriza, aliada ao seu aspecto simples ou até descuidado, Ernesto Assis com frequência espanta aqueles interlocutores que só o conhecem superficialmente. Ele é fértil em subtis apreciações sobre autores e personagens da BD, além de ter um manancial inesgotável de conhecimentos sobre pequenos pormenores relacionados com velhas revistas de histórias aos quadradinhos.

É em relação a este último tema que achámos oportuno ouvi-lo. Todos quantos o conhecem sabem que ele já possuiu - ou, pelo menos, passaram pelas suas mãos com destino a terceiros - valiosas colecções de revistas de BD, ou exemplares raros que descobriu nas suas andanças pelos alfarrabistas de toda a Lisboa.

Daí a pergunta habitual:

- Ernesto Assis: quando começou a coleccionar revistas de banda desenhada?

- Em 1939, ano em que começou a 2ª Guerra Mundial, e em que também me mudei da rua em que nasci na Ajuda, em Lisboa, para outra onde meu pai mais tarde abriria um ferro-velho. Andava na escola primária e foi aí que contactei com o primeiro jornal de quadradinhos, o "Colecção de Aventuras", ao ver o desenho que um meu condiscípulo reproduzia da capa do nº 2 dessa publicação (Red, o Vingador, por Vítor Péon). 

- Atendendo ao que conheço dos seus hábitos, suponho que, neste momento, não terá qualquer colecção completa. 
Mas, ao longo da sua vida, quais as colecções que completou?

- Pergunta difícil de satisfazer, essa. Desde 1939 que não têm conta as colecções completas (menos) e incompletas (mais) que tenho adquirido ao longo dos anos da minha vida conturbada e acidentada. Hoje possuo umas dezenas de exemplares das mais conhecidas e quase a série total do formato maior de "O Senhor Doutor" que é uma dádiva do filho de Chitónio Montalverde, meu amigo dos grandes, já falecido.

- Entre essas colecções que possuiu, quais as que considera mais valiosas quanto ao seu conteúdo e raridade?

- Com receio de ser injusto, ponho em primeiro lugar quanto ao conteúdo "O Diabrete", depois "O Senhor Doutor", e em terceiro "O Mosquito".
Quanto a raridade, é-me difícil dar uma resposta cabal.

- Qual é a revista de BD mais antiga que possui?

- Possuo o primeiro volume, muito estropiado, com a data de Março de 1903, de "O Gafanhoto" nº 1.
Obtive esse volume por troca (e baldroca) de um maço heterogéneo de revistas com o Raul Ribeiro, do Cacém, esse sim, um coleccionador emérito.

- Qual a colecção de BD que lhe deu mais dificuldade a completar?

- Quando tinha colecções - numa altura em que trilhava um caminho mais fixo da minha vida - a primeira vez que senti dificuldades em completar uma colecção foi em 1944, ao começar a tentar adquirir os números de "O Mosquito" (formato grande, o primeiro) que me faltavam, comprando-os a um colega meu da Escola Industrial Marquês de Pombal, à razão de 30 centavos cada um. 
Nessa altura comprava "O Mosquito" avulso, e mais tarde fui assinante.

- Está neste momento a coleccionar alguma revista portuguesa de BD?

- Compro apenas assiduamente o "Mundo de Aventuras". 

- E estrangeiras?

- A última que tentei coleccionar foi a "Chito" (espanhola). Hoje não possuo nada dessa publicação.

- Tem alguma recordação ligada a qualquer das revistas que coleccionou em tempos?

- Quando tinha gosto em ter colecções mais ou menos completas de jornais de quadradinhos, adquiri uma porção enorme do "Diabrete" - quase a primeira série na totalidade - por cinquenta escudos, que ganhei vendendo jornais (o "Notícias da Amadora") calcorreando desde a Amadora até Algés. 
Essa importante parcela do "Diabrete" alienei-a como fiz a tantas outras, forçado pelas circunstâncias da minha vida; presentemente tenho apenas em meu poder uma porção dessa mesma revista que adquiri para estudo.

- Lembra-se de alguma fase da sua infância, ou adolescência, em que, em dias certos, ia à rua comprar uma revista de BD?

- Há realmente revistas que me fazem recordar momentos da minha infância: lembro-me de que, quando ainda era garoto - aí pelos anos de 42 a 47 - comprava "O Mosquito", e mais tarde o "Diabrete". Costumava sair de casa muito cedo, para comprar pão e leite que eram escassos e racionados nessa altura, entrando em bichas. 
Mas às quartas-feiras e sábados, só o fazia depois de adquirir esses jornais nos ardinas, entretendo-me a lê-los enquanto esperava a minha vez. Meus pais ficavam deitados, minha mãe era doente e meu pai trabalhava por conta própria, e eu ia saborear a fresquidão da manhã, mais a excitação da leitura das minhas aventuras preferidas.

- Lembra-se de qual o preço mais elevado que pagou por uma revista?

- Quando tinha os meus dez anos, tais publicações só interessavam aos garotos em idade escolar. Lembro-me que na minha rua eu era o único comprador ou assinante de "O Mosquito" e de "O Pluto" (a única publicação que assinei do princípio ao fim) e todos os meus amigos, do norte ao sul da rua onde morávamos, era à minha porta que se reuniam para ler "O Mosquito", que passava de mão em mão pelos seus entusiásticos leitores.
Pois nessa altura paguei a quantia de dezoito tostões para adquirir o nº 1 do citado jornal que comprei a um conhecido que encontrei no cinema local, o Salão Portugal, na Rua da Memória. 
Para dar uma ideia de como foi caro esse exemplar, posso dar-lhe um exemplo: um ingresso para a "geral" dos cinemas custava dois escudos e cinquenta centavos; uma 2ª plateia, três escudos; e uma 1ª plateia - os melhores lugares, no primeiro piso - oscilava entre os três e quinhentos e os quatro escudos. Isto nos tempos em que os artigos aumentavam um ou dois tostões de longos em longos anos.

- Colecciona álbuns de BD?

- Agora não. Mas quando era empregado da Livraria Bertrand, comprava regularmente os que iam saindo dessa editora, pois tinha desconto.

- Mas mesmo só comprando esporadicamente - como sei que faz agora - segue algum critério? Autores ou personagens, por exemplo?

- Sim, mesmo com sacrifício monetário, compro qualquer publicação - álbuns ou revistas - que se relacione com as figuras de Tarzan, Príncipe Valente e Flash Gordon.

- Colecciona mais alguma coisa?

- Carteiras de fósforos, por série.

- Conte um episódio pitoresco da sua actividade de coleccionador de BD.

- Considero-me um pioneiro do estudo da chamada Banda Desenhada, e das implicações literárias e estéticas que lhe são inerentes. De igual modo fui um peregrino, aí pelos anos de 60 e 70, por tudo que fosse ferro-velho ou alfarrabista.
Adquiri quilos e quilos de jornais de quadradinhos, que depressa dispensava a conhecidos que se interessavam por eles.
Fui eu que primeiro indiquei a Vasco Granja, aí pelos anos de 72 ou 73, um alfarrabista, que lhe vendeu três volumes encadernados, dois de "O Mosquito", correspondendo aos dois primeiros anos, e um da "Colecção de Aventuras", da mesma editora, pela quantia de 160$00; o Vasco ficou com os "Mosquitos" e dispensou-me a "Colecção..." que lhe paguei no fim do mês.
Lembra-se, Geraldes Lino, do volume que troquei consigo por um do "Diabrete"? Foi esse.

- Tem alguma recordação triste relacionada com as suas colecções?

- Sinceramente posso dizer que não. Como desde 1948 faço e desfaço colecções, umas vezes por razões económicas, outras por saturação íntima ou para arranjar espaço, tomo muito a peito a frase de O'Henry, escritor norte-americano, retirada de "O Ladrão Escrupuloso": "O pão que se atira ao lago aparece mais tarde transformado em pudim".
Tomo tal frase como um princípio de renúncia, e esta virtude creio que é uma demonstração de coragem. E como já não somos positivamente crianças...

- No seu entender, qual a influência, para a BD, resultante da actividade dos coleccionadores?

- Acho que os coleccionadores têm influência na BD, e de tomo. Muitas colecções teriam sido transformadas em pasta de papel (e infelizmente isso aconteceu em décadas passadas). 
Se não fosse a actividade dos coleccionadores adultos que salvaram muitos exemplares em perigo de extinção, hoje dificilmente se poderia historiar a carreira desse tipo de publicações.
Por outro lado, é através das colecções adquiridas por esses mesmos, que são adultos hoje, que se revela a evolução dos quadradinhos em Portugal e no estrangeiro, facilitando a visão do que se ganhou e do que se perdeu nas escolas adoptadas através das últimas décadas.

Entrevista por
Geraldes Lino 

                     
Imagens que ilustram o "post":

1. "O Senhor Doutor" - capa do nº 96, Ano II, de 12 Janeiro 1935
2. "O Mosquito" - capa do nº 1, de 14 de Janeiro de 1936
3. "O Diabrete" - capa do nº 220, de 17de Março de 1945
4. "Mundo de Aventuras" - capa do nº 310, de 21 deJulho de 1955
Nota do blóguer: Esta capa, não por acaso escolhida por mim, tem a curiosidade de ter sido desenhada pelo meu amigo João Artur Mamede, bem conhecido pelo pseudónimo de "Jartur" 
5. "O Pluto" - capa do nº 7, de 11 de Janeiro de 1946
6. As duas páginas da revista "Coleccionando" (nº 9, Outubro/Novembro 1984 onde está reproduzida a entrevista.
7. Capa da revista "Coleccionando" (número 9, Outubro/Novembro 1984) 

Nota do bloguer: As revistas de BD que usei para ilustração da postagem são exemplares soltos do meu acervo.           

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Os visitantes interessados em ver os sete artigos anteriores poderão fazê-lo, clicando no item Coleccionadores e Colecções de BD visível no rodapé     


1 comentário:

Anónimo disse...

Para ver mais capas de revistas de BD consulte o site www.bdportugal.info que tem 30.000 imagens de capas.